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Governo ignora STF e não divulga "lista suja" do trabalho escravo

Leonardo Sakamoto

28/01/2017 13h39

O ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira ainda não divulgou o cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo, a chamada "lista suja" da escravidão.

Criada em 2003 pelo governo federal, a "lista suja" é considerada pelas Nações Unidas um dos principais instrumentos de combate ao trabalho escravo no Brasil e apresentada como um exemplo global por garantir transparência à sociedade e um mecanismo para que empresas coloquem em prática políticas de responsabilidade social.

A sua divulgação foi suspensa em dezembro de 2014, quando o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, atendeu a um pedido de liminar de uma associação de incorporadoras imobiliárias que questionava a constitucionalidade da lista.

Contudo, após a publicação de uma nova portaria interministerial (número 4, de 11 de maio de 2016), com mudanças em critérios de entrada e saída do cadastro, a ministra Cármen Lúcia levantou a proibição. "Não se há de desconhecer que os pontos questionados na peça inicial da ação foram sanados na Portaria superveniente e revogadora daquela outra pelo que também por isso não se sustentaria eventual argumento quanto ao indevido seguimento da presente ação", avaliou a ministra, hoje presidente do STF.

Desde então, o ministério do Trabalho poderia divulgar uma nova atualização da lista, mas não o fez.

No dia 19 de dezembro, a Justiça do Trabalho ordenou, em decisão liminar, que o ministro e o governo federal voltassem a publicar, em até 30 dias, o cadastro, atendendo a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho, que denunciou a omissão do poder público ao esconder tais informações. O tema ganhou a mídia nacional e internacional.

Chamando a "lista suja" de "instrumento importantíssimo" de prevencão e repressão ao trabalho escravo, o ministro da Justiça e Cidadania Alexandre de Moraes comprometeu-se, a pedido da secretária nacional de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, a buscar com o ministro do trabalho na próxima semana uma forma de trazer a lista de volta.

A informação foi divulgada em evento sobre trabalho escravo realizado, na última terça (24), como parte da semana de combate à escravidão. Neste sábado (28), Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, relembra-se a Chacina de Unaí, quando quatro funcionários do Ministério do Trabalho foram emboscados e assassinados durante fiscalização em fazendas, no Noroeste de Minas Gerais, em 2004.

Sem citar a declaração, mas em clara resposta a ela, o Ministério do Trabalho divulgou uma nota na quarta (25), afirmando que não irá publicar a lista por enquanto. Leia a nota aqui.

O que diz o governo Temer – "Diante da longa história de judicialização que envolve tal questão, fruto de instrumentos normativos redigidos à toque de caixa e sem a devida profundidade técnica requerida por tema tão controverso, que inclusive acarretou a proibição da divulgação da chamada 'lista suja' por vários anos por determinação expressa do Supremo Tribunal Federal, o Ministério do Trabalho optou por temporariamente não divulgar o cadastro", diz a nota.

Como justificativa, afirma que criou um grupo de trabalho através de portaria de 16/12/2016, para discutir as regras da "lista suja". O GT contará com órgãos do próprio ministério, com outras áreas do governo federal, como a Casa Civil e a Advocacia Geral da União, entre outros, e com o Ministério Público do Trabalho, representações patronais e sindicais. Na nota, o governo diz que os trabalhos (que ainda não começaram, segundo a Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo) devem ir até 29 de julho.

O Ministério do Trabalho afirma que "eventuais inclusões [de pessoas e empresas na lista] indevidas não apenas redundariam em injustiças com graves consequências a cidadãos e empresas, gerando desemprego, como acarretariam nova judicialização do tema, comprometendo a credibilidade do cadastro". A justificativa é a mesma que foi sendo usada por 11 anos por associações de produtores rurais contrárias à existência do cadastro, ignorando que ele é meramente informativo. Não há políticas de restrição na portaria que a prevê. Essas ações são tomadas pelas empresas e outras instituições.

Também disse que a Justiça havia reconsiderado a liminar.

O que retruca o Ministério Público – Em uma resposta incisiva, a Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho emitiu uma nesta nesta sexta (27) afirmando que isso não é verdade. "Não existiu retratação ou reconsideração da liminar pelo Juízo da 11ª Vara do Trabalho Brasília". Segundo o MPT, houve apenas suspensão de prazo para que a União viesse a se manifestar. Leia a nota aqui.

"Preservar os seus cidadãos mais humildes dessa condição aviltante é um dever absoluto das autoridades e das instituições. Os subterfúgios nessa questão central afetam aos Direitos Humanos e depõem contra a pretensão de que sejamos reconhecidos como um país moderno e civilizado. Com tristeza, constata-se que os mecanismos e os argumentos protelatórios indicam que falta a exata compreensão da natureza incondicional do direito tutelado nessa demanda", afirma a nota do MPT.

Até a manhã deste sábado (28), em seu comunicado na internet, o Ministério do Trabalho afirmava que haviam sido resgatadas 15 mil pessoas nos últimos 15 anos. Contudo, de acordo com dados da própria instituição, 45849 pessoas ganharam a liberdade nesse período (até 10 de janeiro de 2017). O erro é citado pelo MPT em sua nota: "É necessário destacar que os números expressivos são fruto de um trabalho articulado entre várias instituições públicas e entidades da sociedade civil organizada, em parceria com auditoria do trabalho que, bravamente, resiste às sucessivas tentativas de sucateamento".

"Na direção contrária à que sugere o texto [do Ministério do Trabalho], não haverá 'inclusões indevidas', nem 'desemprego', tampouco comprometimento da 'credibilidade do cadastro'. A lista suja é um instrumento historicamente crível: desde que surgiu, nos idos de 2003, todas as empresas e instituições financeiras adotam-na como referência para desenvolver políticas de responsabilidade social, gerenciando os riscos decorrentes da celebração de relações comerciais com empregadores autuados por submeterem seus trabalhadores a situações de escravidão", afirma a coordenadoria do MPT.

A Procuradoria Geral da República também notificou o Ministério do Trabalho para explicar a não divulgação da "lista suja".

Rubens Curado Silveira, juiz da 11a Vara do Trabalho de Brasília, havia afirmado em sua decisão liminar que obrigada a publicação da lista que "há mais de uma década, esse cadastro vem se destacando entre as medidas relevantes no enfrentamento do tema, em perfeito alinhamento aos princípios constitucionais da publicidade e da transparência".

Também citou no embasamento da liminar concedida a recente condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos por não ter agido para prevenir a submissão de trabalhadores à escravidão pela fazenda Brasil Verde, localizada no Pará, nem na garantia de Justiça às vítimas.

"Esse foi o primeiro caso decidido pela CIDH [Corte Interamericana] sobre escravidão e tráfico de pessoas, o que acabou por colocar a República Federativa do Brasil no "banco dos réus" do plano internacional. Nesse cenário, revela-se ainda mais preocupante a omissão atacada, pois sinaliza um retrocesso injustificado no trato do tema em uma quadra da história em que o Estado brasileiro deveria, em resposta à condenação que lhe foi imposta, redobrar os esforços em busca da extinção definitiva do trabalho escravo em seu território, o que pressupõe a adoção de todas as medidas de 'caráter jurídico, político, administrativo e cultural' necessárias, a abarcar a publicação, tal como previsto na referida Portaria, do Cadastro de Empregadores", afirmou o juiz na liminar.

O número da ação civil pública é 0001704-55.2016.5.10.0011.

STF proíbe, STF autoriza – Em meio ao plantão do recesso de final de ano de 2014, o Supremo Tribunal Federal garantiu uma liminar à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) suspendendo a "lista suja" do trabalho escravo – o cadastro de empregadores flagrados com esse tipo de mão de obra. A entidade questionou a constitucionalidade do cadastro, afirmando, entre outros argumentos, que a inclusão na lista suja era realizada sem o direito de defesa dos autuados.

Os nomes permaneciam na "lista suja" por, pelo menos, dois anos, período durante o qual o empregador deveria fazer as correções necessárias para que o problema não voltasse a acontecer e quitasse as pendências com o poder público. Como já dito, o cadastro, criado em 2003, era um dos principais instrumentos no combate a esse crime, e citado como referência mundial pelas Nações Unidas.

Em sua decisão, Cármen Lúcia afirmou que a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) número 5.209, proposta pela Abrainc, perdeu o objeto após a publicação de portaria interministerial que resolveu – segundo ela – os questionamentos feitos sobre a lista.

A portaria interministerial número 4, de 11 de maio de 2016, que recriou o cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo, foi assinada no apagar das luzes do governo Dilma Rousseff. Nela, foram aprimorados os critérios de entrada e saída de empregadores. A inclusão na "lista suja" passará a depender da aplicação de um auto de infração específico para condições análogas às de escravo. Até agora, a caracterização poderia ocorrer também através de um conjunto de autos de infração, demonstrando a existência de trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva – o que deve facilitar a defesa dos empregadores.

Ao mesmo tempo, foi criada a possibilidade de uma "porta de saída". Até agora, o empregador inserido no cadastro permanecia por, pelo menos, dois anos, e sua saída – após esse prazo – dependia da regularização de sua situação junto ao Ministério do Trabalho e da melhoria das condições no seu estabelecimento.

A partir da nova portaria, o empregador que assinar um Termo de Ajustamento de Conduta ou acordo judicial com o governo federal, adotando uma série de condicionantes, permanecerá em uma espécie de "área de observação" do cadastro, com as empresas flagradas, mas que estão atuando na melhoria de seu negócio. Essa área também será divulgada. Cumprindo as exigências, poderão pedir sua exclusão dela partir de um ano. E, se descumprirem o acordo, serão retiradas da observação e remetidas à lista principal.

Direito à informação – Durante a suspensão da lista, este blog solicitou e divulgou, em parceria com a Repórter Brasil e o Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que reúne empresas para combater esse crime, um conteúdo muito próximo da "lista suja" caso ela estivesse em vigor. Foram quatro pedidos, um a cada seis meses, mesma periodicidade da original.

Considerando que a "lista suja" nada mais é do que uma relação dos casos em que o poder público caracterizou trabalho análogo ao de escravo e nos quais os empregadores tiveram direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias e que a sociedade tem o direito de conhecer os atos do poder público, foi demandado – com base nos artigos 10, 11 e 12 da Lei de Acesso à Informação (12.527/2011) – que obriga quaisquer órgãos do governo a fornecer informações públicas – e no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 – que o governo brasileiro enviasse um conteúdo próximo do que seria divulgado pela lista. Novas solicitações foram feitas a cada seis meses, prazo de atualização da "lista suja" original, e o resultado por amplamente divulgado.

Tanto a portaria antiga quanto a nova portaria que regulamentam a "lista suja" não obrigam o setor empresarial a tomar qualquer ação, apenas garantia transparência. São apenas fontes de informação a respeito de fiscalizações do poder público.

A sociedade brasileira depende de informações oficiais e seguras sobre as atividades do Ministério do Trabalho na fiscalização e combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Informação livre é fundamental para que as empresas e outras instituições desenvolvam suas políticas de gerenciamento de riscos e de responsabilidade social corporativa. Transparência é fundamental para que o mercado funcione a contento. Se uma empresa não informa seus passivos trabalhistas, sociais e ambientais, sonega informação relevante que pode ser ponderada por um investidor, um financiador ou um parceiro comercial na hora de fazer negócios.

Por conta da divulgação desse conteúdo, este blog sofreu processos judiciais, inclusive criminais, visando à censura do nome de empregadores envolvidos com trabalho análogo ao de escravo de acordo com o governo federal.

A solicitação periódica dessa "Lista de Transparência" via Lei de Acesso à Informação e sua publicação nos últimos dois anos é prova de que o Ministério do Trabalho tem o conteúdo pronto para ser disponibilizado.

Combate ao trabalho escravo – Criada por Fernando Henrique (que reconheceu diante das Nações Unidas, há 22 anos, a persistência da escravidão contemporânea em nosso território), aprimorada por Lula (que ampliou os mecanismos de combate a esse crime) e mantida por Dilma, a política nacional observou conquistas importantes sob governadores, como Geraldo Alckmin, ou prefeitos, como Fernando Haddad, e por iniciativa de parlamentares dos mais diferentes partidos.

A emenda constitucional que prevê confisco de propriedades flagradas com trabalho escravo partiu de um parlamentar do PT (Paulo Rocha). A lei que suspende por dez anos empresas responsabilizadas por trabalho escravo no Estado de São Paulo, de um deputado estadual do PSDB (Carlos Bezerra Jr.). E a lei que, pelo mesmo motivo, suspende do município e aplica multas milionárias, de uma vereadora do PSDB (Patrícia Bezerra). Portanto, a erradicação da escravidão tem sido uma política de Estado e suprapartidária e não apenas uma política de governo.

Desde 1995, o sistema nacional de combate ao trabalho escravo resgatou mais de de 52 mil pessoas em operações de fiscalização em fazendas de gado, soja, algodão, frutas, cana, carvoarias, canteiros de obras, oficinas de costura, bordeis, entre outros. Nesse período, o problema deixou de ser visto como algo restrito a regiões de fronteira agropecuária, como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal e, paulatinamente, passou a ser também de grandes centros urbanos. A capital paulista tornou-se uma dos município com maior número de resgates de trabalhadores nessas condições.

Milhões de reais em condenações e acordos trabalhistas foram pagos. Centenas de empresas aderiram ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, comprometendo-se a cortar negócios com que utiliza esse tipo de crime. Temos um Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, além de estados e municípios engajados em planos regionais. Os prefeitos recém-empossados em São Paulo e no Rio, João Doria e Marcelo Crivella, comprometeram-se publicamente a dar continuidade e ampliar os esforços para erradicar esse forma de exploração.

Mas a política nacional de combate a esse crime segue sofrendo pesados ataques de grupos que perdes dinheiro com ela. Além da falta de transparência quanto à lista suja, há – pelo menos – quatro projetos tramitando no Congresso Nacional para reduzir o conceito de trabalho escravo, diminuindo as chances de punição do crime cortando elementos que o configuram.

Hoje, são quatro elementos que podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes (quando a violação de direitos fundamentais coloca em risco a saúde e a vida do trabalhador) e jornada exaustiva (situação em que a pessoa é submetida a esforço excessivo ou sobrecarga que acarreta danos à sua saúde ou risco de morte).

Mas há parlamentares que afirmam ser difícil conceituar o que sejam esses dois últimos elementos. Querem que as condições em que se encontram os trabalhadores, por mais indignas que sejam, não importem para a definição de trabalho escravo, mas apenas se ele está em cárcere ou não.

Ou seja, se trabalhadores bebiam a mesma água do gado, se eram obrigados a caçar no mato para comer carne, se ficavam em casebres de palha em meio às tempestades amazônicas, se pegavam doenças ou perdiam partes do corpo no serviço e se eram largados sós, entre tantas outras histórias que acompanhei muitas operações de libertação de escravos que participei no campo e na cidade desde 2001.

O fato é que com a aprovação da emenda constitucional 81/2014, prevendo o confisco de propriedades flagradas com trabalho escravo, tendo sido aprovada após 19 anos de trâmite e de pressão social, a bancada ruralista passou a atuar para afrouxar o conceito. É aquela coisa: concordo que se puna assassinato desde que sejam apenas os cometidos por armas de fogo. Praticamente condenar só quem usa pelourinho, chicote e grilhões, sendo que os tempos mudaram, a escravidão é outra e os mecanismos modernos de escravização adotados são sutis.

Com a mudança no conceito, milhares de pessoas que, hoje, cuja exploração poderia ser enquadrada como escravidão simplesmente vão se tornar invisíveis. Vamos resolver o problema chamando-o por outro nome.

Por fim, caso seja aprovado do jeito em que está o projeto que regulamenta a terceirização e está tramitando no Congresso Nacional, o combate ao crime sofrerá um revés. Casos famosos de flagrantes de trabalho escravo surgiram por problemas em fornecedores ou terceirizados em que o governo federal e o Ministério Público do Trabalho puderam responsabilizar grandes empresas pelo que aconteceu na outra ponta. Consideraram que havia responsabilidade solidária por se constatar terceirização de atividade-fim.

Com o projeto aprovado, isso será mais difícil. Além do mais, os chamados "coopergatos" (cooperativas de fachada montadas para burlar impostos) irão se multiplicar e o nível de proteção ao trabalhador cair.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


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