Terceirização de Temer: Empresário, tratamento VIP. Povão, só por terceiros
Leonardo Sakamoto
20/03/2017 21h19
As cúpulas do governo Michel Temer e de sua base de apoio no Congresso Nacional não precisam gostar de "povão".
Povão, sabe? Aquela massa bege, negra, branca, amarela. Que, por vezes, exala o cheiro forte de suor de um dia duro de trabalho. Que ostenta aquela roupa velha, esburacada – doação de alguma campanha antiga de algum político que nem vivo está mais. Que traz os pés cansados por sentirem cada um dos remendos nos chinelos sujos. Que fala e reclama em um português inculto, de sotaque equivocado.
Não, não precisa gostar de nada disso. A Dilma, por exemplo, não gostava de se reunir com lideranças indígenas e só passou a receber movimentos sociais quando seu governo começou a fazer água.
As cúpulas do governo Temer e de sua base de apoio no Congresso Nacional podem continuar gostando de frequentar reuniões com grandes produtores rurais, grandes industriais, grandes comerciantes, exportadores, importadores, instituições financeiras ou com suas associações de classe. Encontros com rega-bofes, ar condicionado e manobrista com gravatinha.
Claro que as reformas implantadas por eles criam graves problemas para a vida do povão supracitado. E claro que seria mais honesto se parassem de se esconder atrás de aplausos efusivos de entidades de classe empresariais e fossem ter um papo-reto com quem vai entregar mais um teco do seu quinhão de dignidade pelo "bem comum". Explicar para a massa amorfa que ela vai ter que suar mais a camisa em nome de um projeto de país, que pouco se importa se ela vive ou morre.
Nesta segunda (20), durante evento da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, que reuniu empresários, o presidente da Câmara dos Deputados e um dos homens de Michel Temer no Congresso Nacional, Rodrigo Maia (DEM-RJ), voltou a dizer que aprovará a ampliação da terceirização ainda nesta semana. Mais um do rosário de eventos nos quais o governo federal e sua base de sustentação no Congresso se reúnem com a nata da economia para mostrar que estão fazendo a lição de casa e, por isso, pedir para não serem abandonados na tempestade de denúncias de corrupção.
O projeto de lei legaliza a contratação de prestadoras de serviços para executarem as atividades para as quais as empresas foram constituídas (atividades-fim) e não apenas serviços de apoio, como é hoje. Isso pode levar a um comprometimento significativo dos direitos trabalhistas, com perda de massa salarial e de segurança para o trabalhador.
Situações que hoje oprimem certas categorias podem ser universalizadas e o Judiciário não terá condições de processar e julgar todas as ações trabalhistas. No limite, poderemos ter um grande problema social quando milhões de trabalhadores perceberem que perderam salários e garantias e nem mesmo podem reclamar com o patrão.
Se ele for aprovado, teremos grandes empresas, que concentram todos os lucros e nenhum empregado, e uma constelação de empresas sem qualquer lastro financeiro ou independência, mas com todos os empregados. Periodicamente, tais empresas encerram as portas, deixando para trás enorme passivo, gerando avalanches de reclamações trabalhistas.
No médio prazo, isso tende a rebaixar salários médios em todos os setores. Estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apontou que, em média um trabalhador terceirizado trabalha três horas a mais por semana e ganha 27% menos que um empregado direto.
As relações deixam de ser entre patrões e empregados, previstas e tratadas pelo direito do trabalho, e serão entre empresas e empresas pessoais ("pejotização"), como se ambas fossem livres e iguais entre si. Hoje, isso já acontece aos montes, apesar de ser proibido, pois os trabalhadores temem reclamar e perder o serviço ou entrar em alguma "lista suja" do setor. Continuarão sendo fraude, mas mais difíceis de serem pegas e punidas.
E no caso de trabalho análogo ao de escravo, em que muitas fazendas e empresas se utilizam de cooperativas e empresas fajutas em nome de prepostos para burlar direitos trabalhistas, o projeto vai facilitar a impunidade das contratantes que, no máximo, terão que bancar salários atrasados, mas sem punição pelos crime encontrado.
Além do mais, isso tende a desorganizar ainda mais a já caótica estrutura sindical. Empregados que estão no mesmo estabelecimento, na mesma empresa, com grau de especialização muito próximo, poderão integrar categorias diferentes. Também pode aumentar o número de sindicatos de "aluguel", situação estimulada pela fragmentação e pelas fontes garantidas de renda para os dirigentes.
"Temos que parar com o mito de que regulação gera emprego. O excesso de leis no Brasil tem gerado desempregados", afirmou Rodrigo Maia no evento.
O ideal é que o Brasil não tivesse uma legislação trabalhista tão complexa. E que patrões e empregados resolvessem tudo na negociação sem a necessidade do Estado se meter no meio. Da mesma forma, o ideal é que o Brasil não tivesse uma legislação ambiental tão engessada, fazendo com que fazendeiros cuidassem do ambiente e de sua produção sem o Estado se meter no meio. E o ideal é que o Brasil não tivesse uma legislação sanitária tão restritiva, garantindo mais liberdade a indústrias alimentícias, sem o Estado se meter no meio. Ou que não houvesse leis punindo violência doméstica, bastando que nós homens respeitássemos as mulheres. Enfim, vocês entenderam o recado…
É mais fácil crer em Papai Noel do que acreditar que essas relações seriam equilibradas por aqui. Para quem isto seria o paraíso? E para quem seria o inferno?
É fácil Rodrigo Maia cantar música que os empresários gostam de ouvir. Mas o governo e sua base parlamentar deveriam visitar o Capão Redondo, Vigário Geral, entre outros bairros humildes e, em uma reunião com as comunidades, explicar seus projetos e se dispor a responder perguntas dos trabalhadores sobre a Reforma da Previdência, a Reforma Trabalhista, a ampliação da terceirização. Poderia até ser um reality show, em que telespectadores vão eliminando os políticos, um a um, diante de seu desempenho.
Por que o governo e aliados não garantem isonomia de tratamento entre patrões e trabalhadores nem na hora de explicar o motivo da porrada que os mais pobres vão levar?
Porque há um jabuti no alto do poste. Mas esse jabuti não chegou sozinho lá. Teve uma mãozinha da elite econômica.
Como não tem coragem de falar com a xepa diretamente, o governo contrata campanhas publicitárias em veículos de comunicação e em redes sociais para tentar convencê-la. Até paga youtuber famoso para mostrar que legal mesmo é uma reforma educacional imposta de cima para baixo.
A verdade é que a terceirização já foi aprovada por aqui, nós que não percebemos.
Com empresário, o tratamento é direto. Com o povão, só por terceiros.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.