Topo

Ministério do Trabalho volta a publicar "lista suja" do trabalho escravo

Leonardo Sakamoto

23/03/2017 20h02

O Ministério do Trabalho voltou a publicar, nesta quinta (23), o cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, conhecido como a "lista suja". A lista publicada conta com 68 nomes e ocorre após uma série de decisões judiciais.

Os dados sobre flagrantes que caracterizaram trabalho escravo tornaram-se o centro de uma polêmica após o Ministério do Trabalho, órgão responsável por sua publicização semestral desde 2003, evitar, na Justiça, a divulgação do cadastro. O ministério alegou a necessidade de aprimorar as regras a fim de não prejudicar empregadores. O Ministério Público do Trabalho entrou, em dezembro passado, com uma ação exigindo a publicização da lista.

Inicialmente, o Ministerio do Trabalho havia publicado uma relação com 85 nomes às 19h17 do dia 23/03/2017. Mas atualizou a lista às 21h32, republicando-a, agora com 68 empregadores. Segundo o ministério, 17 pessoas e empresas, que ainda não haviam esgotado os recursos a que tinham direito na esfera administrativa, tiveram seus nomes divulgados erroneamente.

Clique aqui para ver a "lista suja" (link para o site do ministério, versão jpeg)
Clique aqui para ver a "lista suja" (em versão de planilha)

Em meio ao plantão do recesso de final de ano de 2014, o Supremo Tribunal Federal garantiu uma liminar à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) suspendendo a "lista suja" do trabalho escravo. A entidade questionou a constitucionalidade do cadastro de empregadores, afirmando, entre outros argumentos, que a inclusão na lista suja era realizada sem o direito de defesa dos autuados.

Após a publicação de uma nova portaria interministerial (número 4, de 11 de maio de 2016), com mudanças em critérios de entrada e saída do cadastro, a ministra Cármen Lúcia suspendeu a proibição cinco dias depois.

"Não se há de desconhecer que os pontos questionados na peça inicial da ação foram sanados na Portaria superveniente e revogadora daquela outra pelo que também por isso não se sustentaria eventual argumento quanto ao indevido seguimento da presente ação", avaliou a ministra, hoje presidente do STF.

Desde então, o ministério do Trabalho poderia divulgar uma nova atualização da lista, mas não o fez.

No dia 19 de dezembro de 2016, a Justiça do Trabalho ordenou, em decisão liminar, que o ministro e o governo federal voltassem a publicar, em até 30 dias, o cadastro, atendendo a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho, que denunciou a omissão do poder público ao esconder tais informações. O tema ganhou a mídia nacional e internacional.

"A obrigação do Ministério do Trabalho em divulgar os nomes dos empregadores que exploram o trabalho escravo decorre de compromissos assumidos pela República Federativa do Brasil em âmbito internacional, os quais impedem retrocessos nos passos já trilhados em prol da erradicação da escravidão contemporânea", afirma o procurador do Trabalho Tiago Cavalcanti, que está à frente da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho.

Em sua decisão de dezembro, o juiz Rubens Curado Silveira, 11a Vara do Trabalho de Brasília, afirmou que "há mais de uma década, esse cadastro vem se destacando entre as medidas relevantes no enfrentamento do tema, em perfeito alinhamento aos princípios constitucionais da publicidade e da transparência".

O Ministério do Trabalho solicitou mais prazo ao juiz a fim de apresentar sua defesa, o que foi concedido. Mas, passado o tempo, os argumentos continuaram não sendo aceitos para a concessão da liminar. Insatisfeito, o governo levou o pleito ao Tribunal Regional do Trabalho, quando recebeu nova negativa por parte do presidente da corte, o desembargador Luís Vicentin Foltran.

"A inclusão de um nome no cadastro constituiu a etapa final de todo um procedimento fixado por normas específicas editadas, repita-se, pelo próprio Ministério do Trabalho, órgão da Administração Federal responsável e estruturado para apurar as denúncias de irregularidades e fiscalizar o trabalho em todo o território nacional", afirmou. "Impedir a divulgação do cadastro, como registrado na decisão liminar, 'acaba por esvaziar, dia a dia, a política de Estado de combate ao trabalho análogo ao de escravo no Brasil'."

O governo recorreu e obteve do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, a liminar garantindo a suspensão da obrigação de divulgar a lista. "O nobre e justo fim de combate ao trabalho escravo não justifica atropelar o Estado Democrático de Direito, o devido processo legal, a presunção de inocência e o direito à ampla defesa, concedendo liminar ao se iniciar o processo para se obter a divulgação da denominada 'lista suja' dos empregadores sem que tenham podido se defender adequadamente", afirmou.

O Ministério do Trabalho criou um grupo de trabalho em dezembro de 2016, para discutir as regras de entrada e saída de nomes da "lista suja". O GT conta com órgãos do próprio ministério, com outras áreas do governo federal, como a Casa Civil e a Advocacia Geral da União, representações patronais e sindicais. Até agora, houve duas reuniões e o prazo para sua conclusão é de 120 dias.

O Ministério do Trabalho afirma que "eventuais inclusões indevidas não apenas redundariam em injustiças com graves consequências a cidadãos e empresas, gerando desemprego, como acarretariam nova judicialização do tema, comprometendo a credibilidade do cadastro".

Então, o ministro Alberto Luiz Bresciani, do Tribunal Superior do Trabalho, deferiu, no dia 14 de março, liminar obrigando o governo federal a divulgar a relação. Sorteado como relator do caso, ele tornou sem efeito a decisão do presidente do TST, que havia decidido a favor do governo federal.

Bresciani considerou que o governo federal não poderia ter entrado com pedido de suspensão da liminar junto ao TST uma vez que não estavam esgotados os recursos no Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região. Ele não julgou o mérito do caso, mas ordenou que ele retornasse ao TRT. Ou seja, volta a valer a última decisão, proferida pelo desembargador Pedro Luís Vicentin Foltran, presidente do Tribunal, de garantir a divulgação da lista.

"A União manejou pedido de suspensão de liminar e de antecipação de tutela, perante o TST, na mesma data em que o Exmo. Sr. Desembargador Presidente do TRT da 10a Região, indeferiu o pedido de suspensão dos efeitos da tutela provisória concedida na ação civil pública, situação que revela a ausência de esgotamento das vias recursais", afirmou Bresciani em sua decisão.

"Necessário frisar que o princípio do devido processo legal é expressão da garantia constitucional de que as regras pré-estabelecidas pelo legislador ordinário devem ser observadas na condução do processo, assegurando-se aos litigantes, na defesa dos direitos levados ao Poder Judiciário, todas as oportunidades processuais conferidas por Lei, desde que manejadas dentro de padrão de legalidade."

Por fim, o Ministério do Trabalho recorreu ao Supremo Tribunal Federal, mas, obedecendo a decisão judicial, publicou o cadastro nesta quinta (23).

Critérios de entrada e saída da lista suja –  A "lista suja" conta desde 2003 com critérios de inclusão e exclusão de nomes. As portarias que a preveem foram sendo aperfeiçoadas ao longo do tempo sem que a lista precisasse ser suspensa.

Entre 2003 e 2014, os nomes permaneciam na "lista suja" por, pelo menos, dois anos, período durante o qual o empregador deveria fazer as correções necessárias para que o problema não voltasse a acontecer e quitasse as pendências com o poder público.

Em sua decisão, Cármen Lúcia afirmou que a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) número 5.209, proposta pela Abrainc, perdeu o objeto após a publicação de portaria interministerial que resolveu – segundo ela – os questionamentos feitos sobre a lista. Na portaria interministerial número 4, de 11 de maio de 2016, foram aprimorados os critérios de entrada e saída de empregadores.

A inclusão na "lista suja" passaria a depender da aplicação de um auto de infração específico para condições análogas às de escravo (o auto 444, citado acima), além dos outros autos que já eram aplicados desde 2003 e, em conjunto, configuram trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva. Os quatro elementos que, de acordo com o artigo 149 do Código Penal, caracterizam escravidão contemporânea.

Ao mesmo tempo, foi criada a possibilidade de uma "porta de saída". Até agora, o empregador inserido no cadastro permanecia por, pelo menos, dois anos, e sua saída – após esse prazo – dependia da regularização de sua situação junto ao Ministério do Trabalho e da melhoria das condições no seu estabelecimento.

A partir da nova portaria, o empregador que assinar um Termo de Ajustamento de Conduta ou acordo judicial com o governo federal, adotando uma série de condicionantes, permanecerá em uma espécie de "área de observação" do cadastro, com as empresas flagradas, mas que estão atuando na melhoria de seu negócio. Essa área também será divulgada. Cumprindo as exigências, poderão pedir sua exclusão dela partir de um ano. E, se descumprirem o acordo, serão retiradas da observação e remetidas à lista principal.

Mesmo com as mudanças, empregadores de determinados setores em que foi detectada a incidência de escravidão contemporânea fizeram pesado lobby junto ao Ministério do Trabalho para que a lista não fosse publicada.

Trabalho escravo  – Criada por Fernando Henrique (que reconheceu diante das Nações Unidas, há 22 anos, a persistência da escravidão contemporânea em nosso território), aprimorada por Lula (que ampliou os mecanismos de combate a esse crime) e mantida por Dilma, a política nacional também observou conquistas importantes sob governadores, como Geraldo Alckmin, ou prefeitos, como Fernando Haddad, e por iniciativa de parlamentares dos mais diferentes partidos.

Desde 1995, o sistema nacional de combate ao trabalho escravo resgatou mais de de 52 mil pessoas em operações de fiscalização em fazendas de gado, soja, algodão, frutas, cana, carvoarias, canteiros de obras, oficinas de costura, bordeis, entre outros. Nesse período, o problema deixou de ser visto como algo restrito a regiões de fronteira agropecuária, como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal e, paulatinamente, passou a ser também de grandes centros urbanos. A capital paulista tornou-se um dos municípios com maior número de resgates de trabalhadores nessas condições.

Lista de Transparência – Considerando que a "lista suja" nada mais é do que uma relação dos casos em que o poder público caracterizou trabalho análogo ao de escravo e nos quais os empregadores tiveram direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias; e que a sociedade tem o direito de conhecer os atos do poder público, este blog, em parceira com a Repórter Brasil, e o Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, solicitou cinco vezes, semestralmente, desde o início de 2015, com base nos artigos 10, 11 e 12 da Lei de Acesso à Informação (12.527/2011) e no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, uma relação aproximada do que era a "lista suja".

A nova portaria que regulamenta a "lista suja", publicada em 11 de maio de 2016, que nunca havia sido colocada em prática, afirma que, para ser incluído no cadastro, o empregador deve ter recebido o auto de infração número 444. Esse auto passou a ser lavrado obrigatoriamente por fiscais do trabalho para todos os flagrados por trabalho escravo e funciona como uma espécie de "marcador" para que o empregador rastreie mais facilmente o trâmite de seu processo administrativo no âmbito do Ministério do Trabalho. O cadastro, portanto, se adotasse o critério da portaria de maio de 2016, teria os nomes que receberam o 444. Por isso, também pedimos via Lei de Acesso à Informação que fosse incluído o seguinte pedido: "e se, no momento da fiscalização, foi lavrado auto de infração capitulado no artigo 444 da CLT em razão da constatação de trabalho análogo ao de escravo".

Como o Ministério do Trabalho recorreu judicialmente sobre a demanda do MPT que o obrigava a divulgar  a "lista suja", o que ocorreria com os critérios dessa nova portaria, o quinto pedido da "Lista de Transparência sobre Trabalho Escravo Contemporâneo" incorporou dois cenários: a) o conteúdo aproximado do que seria "lista suja" se fossem vigentes os critérios que valeram entre novembro de 2003 e dezembro de 2014; e b) o conteúdo aproximado do que seria "lista suja" se fossem vigentes os critérios da portaria de maio de 2016 – que nunca foi e pode nunca vir a ser materializada por conta da ação do Ministério do Trabalho. A diferença entre ambos os cenários está na última coluna da tabela, que aponta quais empregadores receberam o auto de infração 444.

Post atualizado às 22h29 do dia 23/03/2017 para inclusão de informação sobre a correção feita pelo Ministerio do Trabalho.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Ministério do Trabalho volta a publicar "lista suja" do trabalho escravo - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto