Governo oculta nomes que poderiam estar na "lista suja" do trabalho escravo
Leonardo Sakamoto
24/03/2017 21h14
O Ministério do Trabalho excluiu nomes de empregadores da "lista suja" do trabalho escravo que deveriam estar lá de acordo com as regras da portaria que a prevê. O governo afirma que a inclusão havia sido equivocada e, portanto, a retirada era necessária. Contudo, análise do trâmite dos autos de infração mostra que ao menos parte deles está apta a constar da lista. O que contraria a afirmação do próprio ministério e levanta a pergunta: por que os nomes saíram realmente?
Após decisão judicial obrigando-o a divulgar o cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escrava, conhecido como a "lista suja", o Ministério do Trabalho publicizou, em seu site, 85 empregadores na noite desta quinta (23). Duas horas depois, retirou 17 deles, deixando uma relação com 68 nomes para consulta pública.
A justificativa oficial fornecida pelo Ministério do Trabalho a este blog, na noite do dia 23 e confirmada na tarde do dia 24, para a exclusão foi de que houve um erro por parte da instituição, uma vez que essas 17 pessoas e empresas não teriam esgotado ainda os recursos a que têm direito na esfera administrativa – situação necessária para a inclusão de empregadores no cadastro de acordo com a portaria que prevê seu funcionamento. A versão original foi ao ar às 19h17, desta quinta (23), e a segunda versão, às 21h32.
Mas, de acordo com informações solicitadas à Superintendência Regional do Trabalho de Minas Gerais, pelo menos seis desses 17 empregadores que estão localizados no Estado não podem mais recorrer. O sistema de Controle de Processos de Multas e Recursos do Ministério do Trabalho aponta que seis pessoas físicas, Éder Murilo Antunes, Gaspar Souza, José Cazelato Sobrinho, Paulo Afonso Queiroz Guimarães, Sebastião Honório Pedroso e Sérgio Roberto de Lima Dias, tiveram seus autos de infração, incluindo o 444 (referente à caracterização de trabalho análogo ao de escravo), transitados com decisão irrecorrível antes de 31/12/2016.
Segundo a Superintendência, o poder público também não foi notificado em ações judiciais contra a União, por qualquer um desses empregadores, contra os autos de infração de forma a impedir os efeitos gerados pelas decisões administrativas.
Portanto, os nomes poderiam estar nessa atualização da "lista suja" do trabalho escravo.
Este blog também checou os autos de infração 444 recebidos pelos outros 11 empregadores (um do Amapá, um de Goiás, mais um de Minas Gerais, um do Pará, um do Paraná, um no Rio de Janeiro, dois de Santa Catarina, dois de São Paulo, um no Tocantins), através do sistema eletrônico disponível no site do ministério, e verificou que não há recursos pendentes sem decisão administrativa.
Os dados sobre flagrantes que caracterizaram trabalho escravo tornaram-se o centro de uma polêmica após o Ministério do Trabalho, órgão responsável por sua publicização semestral de 2003 a 2014, evitar, na Justiça, a divulgação do cadastro.
O ministério foi contatado novamente, na noite desta sexta (24), para falar a respeito do motivo que levou à retirada de nomes que não podiam mais recorrer. Mas nenhum representante que pudesse responder ao questionamento foi localizado. Assim que receber um posicionamento, este blog publicará neste post.
"O Ministério Público do Trabalho fez uma análise amostral e percebeu que há indícios de que os nomes foram excluídos de forma equivocada", afirma o procurador Tiago Cavalcanti, que está à frente da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do MPT. "Por isso, já solicitamos esclarecimentos do Ministério do Trabalho sobre os motivos que levaram os empregadores serem retirados após a primeira publicação."
Polêmica da "lista suja" – No final de 2014, o Supremo Tribunal Federal garantiu uma liminar a uma associação de incorporadoras que suspendeu a "lista suja". A entidade questionou a constitucionalidade do cadastro de empregadores, afirmando, entre outros argumentos, que a inclusão na lista suja era realizada sem o direito de defesa dos autuados.
Após a publicação de uma nova portaria interministerial (número 4, de 11 de maio de 2016), com mudanças em critérios de entrada e saída do cadastro, a ministra Cármen Lúcia levantou a proibição cinco dias depois. Mas o Ministério do Trabalho não divulgou uma nova atualização da lista.
No dia 19 de dezembro de 2016, o juiz Rubens Curado Silveira, da 11a Vara do Trabalho de Brasília, ordenou, em decisão liminar, que o ministro e o governo federal voltassem a publicar o cadastro, atendendo a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho, que denunciou a omissão do poder público ao esconder tais informações.
O tema ganhou a mídia nacional e internacional. O governo levou o pleito ao Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região, quando recebeu nova negativa por parte do presidente da corte, o desembargador Luís Vicentin Foltran.
O governo recorreu, novamente, e obteve do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, liminar garantindo a suspensão da obrigação de divulgar a lista. O ministro Alberto Luiz Bresciani, sorteado como relator do caso no TST, tornou sem efeito a decisão anterior e deferiu, no dia 14 de março, liminar que devolveu a decisão ao TRT, o que obrigou o governo federal a divulgar a relação.
A União recorreu ao Supremo Tribunal Federal, mas, obedecendo a decisão judicial, publicou o cadastro nesta quinta (23).
O Ministério do Trabalho criou um grupo de trabalho em dezembro de 2016, para discutir as regras de entrada e saída de nomes da "lista suja", com representações do governo, empresas e trabalhadores e prazo de 120 dias. Em sua justificativa, o órgão afirma que "eventuais inclusões indevidas não apenas redundariam em injustiças com graves consequências a cidadãos e empresas, gerando desemprego, como acarretariam nova judicialização do tema, comprometendo a credibilidade do cadastro".
Critérios de entrada e saída – A "lista suja" conta desde 2003 com critérios de inclusão e exclusão de nomes. As portarias que a preveem foram sendo aperfeiçoadas ao longo do tempo sem que a lista precisasse ser suspensa.
Entre 2003 e 2014, os nomes permaneciam na "lista suja" por, pelo menos, dois anos, período durante o qual o empregador deveria fazer as correções necessárias para que o problema não voltasse a acontecer e quitasse as pendências com o poder público.
Em sua decisão, Cármen Lúcia afirmou que a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) número 5.209, proposta pela associação das incorporadoras imobiliárias, perdeu o objeto após a publicação de portaria interministerial que resolveu – segundo ela – os questionamentos feitos sobre a lista.
A inclusão na "lista suja" passaria a depender da aplicação de um auto de infração específico para condições análogas às de escravo (o auto 444, citado acima), além dos outros autos que já eram aplicados desde 2003 e, em conjunto, configuram trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva. Os quatro elementos que, de acordo com o artigo 149 do Código Penal, caracterizam escravidão contemporânea.
Ao mesmo tempo, foi criada a possibilidade de uma "porta de saída". Até agora, o empregador inserido no cadastro permanecia por, pelo menos, dois anos, e sua saída – após esse prazo – dependia da regularização de sua situação junto ao Ministério do Trabalho e da melhoria das condições no seu estabelecimento.
A partir da nova portaria, o empregador que assinar um Termo de Ajustamento de Conduta ou acordo judicial com o governo federal, adotando uma série de condicionantes, permanecerá em uma espécie de "área de observação" do cadastro, com as empresas flagradas, mas que estão atuando na melhoria de seu negócio. Essa área também será divulgada. Cumprindo as exigências, poderão pedir sua exclusão dela partir de um ano. E, se descumprirem o acordo, serão retiradas da observação e remetidas à lista principal.
A "lista suja" é considerada uma referência global no enfrentamento à escravidão contemporânea pelas Nações Unidas por garantir transparência.
Colaborou Stefano Wrobleski.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.