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Chacina em MT lembra que Brasil é bom em cultivar assassinatos no campo

Leonardo Sakamoto

23/04/2017 15h41

Nove pessoas foram assassinadas em uma área próxima a um assentamento em Colniza (MT), município que faz divisa com os Estados do Amazonas e Rondônia, localizado no bioma amazônico. O crime ocorreu na quarta (19), de acordo com a perícia. Dois foram mortos a facadas e sete com tiros de calibre 12 por pessoas encapuzadas, de acordo com sobreviventes.

Colniza tem um histórico de conflitos agrários. De acordo com nota divulgada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), em junho de 2004, famílias do assentamento foram expulsas por homens armados e tiveram suas plantações destruídas. Em 2007, pelo menos dez trabalhadores foram vítimas de tortura e cárcere privado por uma máfia que atua na extração ilegal de madeira. No mesmo ano, há registros de assassinatos de agricultores.

Uma das hipóteses é de que os autores do crime sejam jagunços dos fazendeiros da região, mas é necessário esperar as investigações determinarem o que realmente aconteceu.

Independentemente disso, já podemos somar esse número ao saldo de mortes decorrentes do conflito deflagrado no campo no Brasil. Em que a vida da população mais pobre vale menos do que esterco. De acordo com a CPT, entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), já são 19 os assassinatos em conflitos agrários no país apenas neste ano.

As mortes no campo são resultado de um modelo de desenvolvimento concentrador, excludente, que privilegia o grande produtor e a monocultura, em decorrência ao pequeno e o médio. Que superexplora mão de obra, chegando, no limite, à escravidão contemporânea, a fim de facilitar a concorrência em cadeias produtivas cada vez mais globalizadas. Que fomenta a grilagem de terras e a especulação fundiária, até porque tem muita gente graúda e de sangue azul se beneficia com as terras esquentadas e prontas para o uso. Que muito antes da época dos verde-oliva já considerava a região como um "imenso deserto verde" a ser conquistado – como se o pessoal que lá morasse e de lá dependesse fossem meros fantasmas. Que está pouco se importando com o respeito às leis ambientais, porque o país tem que crescer rápido, passando por cima do que for. Tudo com a nossa anuência, uma vez que consumimos os produtos que vêm de lá alegres e felizes.

A violência na Amazônia não é uma questão do bem contra o mal. É uma questão econômica. Tem gente que ganha muito com o sistema do jeito em que está. Para quebra-lo, é necessário reinventar muitas práticas e sacudir o modelo. O governo Temer não irá fazer isso, da mesma forma que os governos Dilma, Lula, Fernando Henrique, Itamar, Collor e Sarney também não fizeram. E não estamos falando de revolução, mas de simplesmente seguir as regras do jogo – coisa que é vista com desdém em nosso capitalismo de periferia.

Enquanto isso, a História vai se repetindo como farsa. Na década de 80 e 90, fazendeiros resolveram acabar com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no Sul do Pará, um dos mais atuantes na região, e assassinaram uma série de lideranças. De acordo com frei Henri des Roziers, então advogado da Comissão Pastoral da Terra em Xinguara (PA), foi assassinado o primeiro presidente em 1985. "Depois, foi a vez de um dos líderes em 90 e seus dois filhos, que eram do sindicato. Foi assassinado, em 90, um diretor. E, em 91, mataram seu sucessor dele, além de outros que foram baleados. Passei da região do Bico-do-Papagaio para aqui a fim de ajudar na apuração desses crimes." Os casos foram a julgamentos, houve condenações, mas os pistoleiros fugiram. Henri, foi, ele mesmo, um dos marcados para morrer no Pará e viveu sob escolta policial 24 horas por dia.

O Massacre de Eldorado dos Carajás, no Sul do Pará, que matou 19 sem-terra e deixou mais de 60 feridos após uma ação violenta da Polícia Militar para desbloquear a rodovia PA-150, completou 21 anos no dia 17 de abril. A rodovia estava ocupada por uma marcha do MST que se dirigia à Marabá para exigir a desapropriação de uma fazenda, área improdutiva que hoje abriga o assentamento 17 de Abril.

Em fevereiro de 2005, a missionária Dorothy Stang foi assassinada com seis tiros – um deles na nuca – aos 73 anos. Ela foi alvejada numa estrada vicinal de Anapu (PA). Ligada à Comissão Pastoral da Terra, Dorothy fazia parte da Congregação de Notre Dame de Namur, da Igreja Católica. Naturalizada brasileira, atuava no país desde 1966 e defendia os Programas de Desenvolvimento Sustentável como modelo de reforma agrária na Amazônia.

De tempos em tempos, um trabalhador rural, indígena, ribeirinho, quilombola, camponês é morto na Amazônia. Alguns são mais conhecidos e ganham mídia nacional e internacional, mas a esmagadora maioria passa como anônimos e são velados apenas por seus companheiros e familiares.

Na prática, com louváveis exceções como a de magistrados com coragem de condenar escravagistas ou de procuradores que não dão trégua a quem mata e desmata, a Justiça tem servido para proteger o direito de alguns mais ricos em detrimento dos que nada têm. Mudanças positivas têm acontecido, mas muito pouco diante do notório fracasso até o presente momento.

Mortes no campo não são de hoje, mas há muitos produtores rurais e extrativistas gananciosos que estão com sangue nos olhos. Talvez por se sentirem fortalecidos pelas alianças políticas que fizeram, talvez por verem no atual governo federal um aliado para suas demandas. Querem mudar as regras da demarcação de territórios indígenas, suprimir ainda mais a proteção ambiental, "flexibilizar" as regras para a implantação de grandes empreendimentos, enfraquecer o conceito de trabalho escravo contemporâneo.

Os representantes políticos que defendem esse discurso em Brasília podem não ser os que apertam o gatilho na Amazônia. Mas a narrativa que defendem é responsável por fazer com que essa violência seja vista como uma necessária "limpeza" em nome do "progresso".

Precisamos construir uma opção de desenvolvimento que inclua o respeito às leis ambientais sem chance para anistias que criem a sensação de impunidade do "desmata aí, que depois a gente perdoa". Que passe pela regularização fundiária geral, confiscando as terras griladas, e a realização de uma reforma agrária, com a garantia de que os recursos emprestados pelos governos às pequenas propriedades – as verdadeiras responsáveis por garantir o alimento na mesa dos brasileiros – sejam, pelo menos, da mesma monta que os das grandes. Por preservar os direitos das populações tradicionais, os assentados e de projetos extrativistas. Por manter o combate ao trabalho escravo e evitar o desmonte da proteção trabalhista no país.

Muitos de nós passamos os olhos em notícias como essa, mas não nos detemos para saber mais sobre o que aconteceu. Pensamos que não é conosco. Mas a produção na Amazônia está umbilicalmente ligada a nós através de extensas cadeias produtivas. Desde 2003, a ONG Repórter Brasil mapeou mais de mil cadeias de escoamento, mostrando como mercadorias que fazem parte do dia a dia dos brasileiros e do mundo foram produzidas através do sofrimento de seres humanos e de danos ao meio.

De onde você acha que vem o bife do seu churrasco de domingo ou o carvão usado na fabricação de ferro-gusa, matéria-prima do aço com o qual é feito o seu carro? Ou a origem do cacau que você consome? A maior parte da madeira extraída da Amazônia, por exemplo, não vira mesinha de centro na Europa, mas é utilizada na construção civil brasileira.

Através de conexões por cadeias produtivas nos tornamos financiadores involuntários de crimes cometidos, em nosso nome, a milhares de quilômetros. Saber disso não deveria produzir culpa, sentimento inútil e imobilizador, mas lembrar de nossa responsabilidade.

Não gosto de dizer que o Estado é "ausente" nessas regiões, pois seria um erro do ponto de vista conceitual. Contudo, as instituições que servem para garantir a efetividade dos direitos fundamentais da parcela mais humilde, como sua proteção e segurança, são mal estruturadas, defeituosas ou insuficientes. Enquanto isso, aquelas criadas para garantir o desenvolvimento econômico, seja através do financiamento do agronegócio, do extrativismo ou dos grandes projetos de engenharia, funcionam que é uma beleza.

E vale ressaltar que o poder público é responsável pela violência na Amazônia por sua omissão, mas também por sua ação. Por exemplo, temos um grande crime chamado Belo Monte, uma das principais bandeiras do governo Dilma Rousseff.

Publiquei aqui sobre a libertação de escravas sexuais que abasteciam a obra pela polícia federal; sobre a morte de operários na obra e os protestos de trabalhadores por melhores condições; sobre como a obra queimava madeira legal e comprava madeira ilegal; sobre denúncias de espionagem envolvendo os construtores contra a sociedade civil; sobre as denúncias de perseguição de movimentos sociais por conta de críticas à obra; sobre as denúncias de indígenas por conta do impacto da obra no rio Xingu; sobre os impactos negativos nos moradores de Altamira; sobre as críticas do sistema interamericano de direitos humanos contra a obra; sobre a aprovação da obra a toque de caixa junto aos órgãos ambientais, sem ouvir decentemente as populações diretamente envolvidas, desrespeitando convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário; sobre como a população local estava sendo desprezada em todo esse processo em nome do conforto de nós, que vamos aproveitar da energia gerada. Sem contar as denúncias de corrupção.

Em todos, criticando o governo brasileiro pela obra ou por sua tosca defesa. Pois o governo mentiu descaradamente sobre o impacto e ficou por isso mesmo.

Desde a ditadura, somos obrigados a ouvir discursos de que a vida de algumas centenas de famílias camponesas, ribeirinhas, quilombolas ou indígenas não pode se sobrepujar ao "interesse nacional". Discursos que taxam de "sabotagem sob influência estrangeira" a atuação de movimentos e entidades sérias que atuam para que o "progresso" não trague o país. Valeria a pena pararmos para refletir e perceber que o que alguns chamam de "interesse nacional" é, na verdade, seu próprio interesse maquiado por belas propagandas.

Se você não respira fundo corre o risco de ser absorvido pela espiral de banalização de violência ao ler notícias da fronteira agrícola da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal. O horror de ontem passa a ser nada diante da bizarrice de hoje, retroalimentada pela impunidade. Afinal, há mais chances de eu ser atingido na rua por um meteoro em chamas do que o Brasil garantir que os seus violadores de direitos humanos sejam sistematicamente responsabilizados e punidos.

Faça uma experiência: pegue os jornais da época de todos esses assassinatos. Pode ser apenas os dos mais famosos. Verá que é só trocar o nome dos mortos, do município e onde foi a emboscada para serem a mesma matéria. As mesmas desculpas do governo, os mesmos planos de ação parecidos, as mesmas reclamações da Comissão Pastoral da Terra, os mesmos grupos sendo criados para debater e encontrar soluções – e, às vezes, nem isso. Jornalistas preguiçosos que não têm criatividade para escrever um texto diferente? Não.

O que me leva a crer que o Brasil bem que poderia ser processado por repetidos plágios de sua própria incompetência.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto