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"Não leva meus bagulho, não. Não tenho nada": A banalidade do mal no Brasil

Leonardo Sakamoto

04/05/2017 15h51

Causou comoção nas redes sociais o vídeo que mostra membros da Guarda Civil Metropolitana batendo em um homem em situação de rua, na manhã desta quarta (3), em São Paulo. Samir Sati, de 40 anos, tentava proteger um carrinho com seus únicos pertences e, chorando, pedia: "Não leva meus bagulho não, caramba. Eu não tenho nada".

Ao final, foi levado para a delegacia. Por conta da agressão, teve um punho quebrado e terá que passar por cirurgia. Ele começaria a trabalhar como servente de pedreiro nesta quinta. As imagens foram gravadas por Marcos Hermanson, estudante de jornalismo, que passava pelo local. Entre os materiais confiscados, estavam cobertores e um colchão fino.

A temperatura na madrugada entre terça e quarta chegou a 15o C na capital paulista.

O prefeito João Doria condenou o ato, afirmou que o servidor da GCM foi afastado de suas funções e que conversou com o homem agredido para prestar solidariedade e oferecer assistência por parte Prefeitura.

Tão importante quanto o prefeito ter reconhecido que servidores municipais cometeram um delito é a Prefeitura, quando for condenada a pagar uma indenização a Samir por danos morais (e se houver Justiça, ela será), que não recorra da decisão judicial.

No mesmo dia da agressão, por coincidência, sugeri aos meus alunos de jornalismo a leitura de "Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal", da filósofa Hanna Arendt. Ela, judia e alemã, chegou a ficar presa em um campo de concentração antes de conseguir fugir para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. No livro, conta a história da captura do carrasco nazista Adolf Eichmann, na Argentina, por agentes israelenses, e seu consequente julgamento.

Ao contrário da descrição de um demônio que todos esperavam em seus relatos, originalmente produzidos para a revista New Yorker, o que ela viu foi um funcionário público medíocre e carreirista, que não refletia sobre suas ações e atividades e que repetia clichês burocráticos. Ele não possuía história de preconceito aos judeus e não apresentava distúrbios mentais ou caráter doentio. Agia acreditando que, se cumprisse as ordens que lhe fossem dadas, ascenderia na carreira e seria reconhecido entre seus pares por isso. Cumpria ordens com eficiência, sendo um bom burocrata, sem refletir sobre o mal que elas causavam.

A autora não quis com o texto, que acabou lhe rendendo ameaças, suavizar os resultados da ação de Eichmann, mas entendê-lo em um contexto maior. Ele não era o mal encarnado. Seria fácil pensar assim, aliás. Mas explicar que a maldade foi construída aos poucos, por influência de pessoas e diante da falta de crítica, ocupando espaço quando as instituições politicamente permitiram. O vazio de pensamento é o ambiente em que o "mal" se aconchega, abrindo espaço para a banalização da violência.

Claro que a justificativa do "estou apenas cumprindo ordens" para o cometimento de atrocidades não deve ser aceita. Apesar dela continua sendo colocada à mesa, como na defesa de policiais militares envolvidos no Massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos em 1992. Lembrando que a condenação de 74 PMs envolvidos foi cancelada, no mês passado, e um novo julgamento será marcado.

Mas é assustador saber que alguém visto como "normal" e "comum" pode ser capaz, nos contextos histórico, político e institucional apropriados, tornar-se o que convencionamos chamar de monstro.

Membros da GCM agridem homem em situação de rua que tentava evitar que seus pertences fossem retirados (Vídeo: Marcos Hermanson)

 

Em janeiro deste ano, o prefeito João Doria retirou o veto que proibia a remoção de cobertores, mantas, travesseiros, colchões, papelões de pessoas em situação de rua em São Paulo. Essa proibição havia sido adotada por Fernando Haddad após duras críticas sofridas que ele sofreu por conta da remoção de "itens portáteis de sobrevivência" pela Guarda Civil Metropolitana durante o frio de junho do ano passado, quando pessoas morreram.

Após críticas, na época Doria afirmou que itens que protegem de frio não seriam retirados. "É apenas para preservar o direito da GCM para não haver a ilegalidade, mas jamais retirar pertences e cobertores." A declaração, que respondeu não-respondendo, manteve a pergunta: se não para é retirar, por que não manteve a regra?

As secretarias que cuidam das áreas de Direitos Humanos e de Prefeituras Regionais estão preparando uma portaria para regulamentar os trabalhos de zeladoria urbana. Ou seja, descrever como as ações devem ser feitas as sanções a serem aplicadas diante de irregularidades. É um bom passo, mas não basta. Pois a questão não são apenas os os guardas, mas a cidade e o país.

Não temos como saber se os GCMs que espancaram Samir possuem distúrbios psiquiátricos que os levem a um comportamento violento ou alguma psicopatia grave que demandaria restrições a profissões delicadas como essa. Independentemente disso, devem ser punidos. Administrativamente e criminalmente.

Contudo, vale entender "como nascem os monstros". Pois da mesma forma que policiais militares costumam ser formados para a guerra e não para a garantia da integridade da população, a GCM é treinada para resguardar o patrimônio e não para lidar com pessoas. Em ambos os casos, a estrutura de suas instituições obrigam que mantenham a ordem pública e, para tanto, sigam ordens.

Ao mesmo tempo, estamos em um momento em que a defesa dos direitos humanos passa a ser vista por muitos como um erro histórico que vai contra a segurança dos cidadãos. Por conta do bombardeio midiático, reduz-se o significado de direitos humanos, esquecendo que eles incluem o direito a ter uma casa, de sentir segurança, de não ser escravizado, de professar uma fé, de poder formar uma família. A população adere ao discurso da negação da diferença por causa do medo.

Líderes políticos, sociais ou religiosos afirmam que não incitam a violência através de suas palavras. Porém, se não são suas mãos que seguram a faca ou o revólver, é a sobreposição de seus argumentos e a escolha que fazem das palavras ao longo do tempo que distorce a visão de mundo de seus seguidores e torna o ato de esfaquear e atirar banal. Ou, melhor dizendo, "necessário". Suas ações e regras redefinem, lentamente, o que é ética e esteticamente aceitável, visão que depois será consumida e praticada por terceiros. Estes acreditarão estarem fazendo o certo, quase em uma missão civilizatória ou divina.

Na prática, os envolvidos nesses casos colocam em prática o que leem todos os dias na rede e absorvem em outras mídias: "feministas", "bichas", "índios", "drogados" e "mendigos" são a corja da sociedade e agem para corromper os nossos valores morais, tornar a vida dos "cidadãos pagadores de impostos", um inferno, e a cidade, um lixo. Seres descartáveis, que vivem na penumbra e nos ameaçam com sua existência, que não se encaixa nos padrões estabelecidos pelos "homens de bem".

Em São Paulo, pessoas em situação de rua são espancadas até a morte por cidadãos que querem "limpar" a cidade do "lixo humano". E isso não está relacionado a esta administração municipal apenas, mas acontece há muitos anos. Vira e mexe alguém põe fogo em um cobertor de uma pessoa que está dormindo na rua. A culpa? Na maioria das vezes, recai sobre as próprias vítimas. "Afinal de contas, o que essa gente estava fazendo fora do seu lugar?"

Ou, como já apareceu nas caixas de comentários de matérias que noticiaram a agressão desta quarta: "A violência dos guardas foi desnecessária. Mas o mendigo também pediu, né?"

Foram membros da GCM que, mais do que cumprir ordens dadas, colocavam em prática aquilo que eles acreditam que é seu dever junto à sociedade. Muito provavelmente, consideravam que estavam fazendo o bem. O lugar que ocuparam no momento da agressão também já foi frequentado, na vida real, por jovens da classe alta e baixa, pais e mães de família, engenheiros, professores, empresários… E, em sonho, por centenas de milhares de anônimos que nunca agrediram verbal ou fisicamente uma pessoa em situação de rua apenas porque reprimiram seus desejos.

Diante disso, precisamos de novas narrativas que tragam esperança e solidariedade, preenchendo o vazio de pensamento.

Antes que seja tarde demais.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto