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Temer e Congresso querem cassar a Lei Áurea e a Lei dos Sexagenários?

Leonardo Sakamoto

08/05/2017 18h56

Por mais que parte do agronegócio e da indústria considerem que a Lei Áurea traz prejuízos à competitividade do país, gostaria de manifestar meu apoio à manutenção essa lei.

Sei que isso pode parecer extremista e até antipatriótico em um momento em que Michel Temer, seus principais ministros e muitos deputados federais e senadores atravessam madrugadas em claro buscando reduzir seus efeitos através da aprovação de grandes reformas.

Mas acredito que a Lei Áurea (Lei Imperial 3353/1888) segue atual. E que os custos para manter a liberdade e um mínimo de dignidade aos trabalhadores não são o principal motivo pela qual nossa economia segue lenta feito um cágado. Pelo contrário, apenas um país com homens e mulheres livres e respeitados é capaz de crescer de forma justa e democrática.

O governo federal e o Congresso Nacional não irão revogar a proibição ao direito de uma pessoa ser proprietária de outra (não que a consulta não deva ter sido feita), mas aprovar uma série de medidas que podem reduzir seres humanos a instrumentos descartáveis de trabalho, impedir a fiscalização e o resgate de pessoas escravizadas e enfraquecer a lei que pune esse crime. O que na prática, dá no mesmo.

Muitos ficaram assustados com o projeto de lei da Reforma Trabalhista Rural (PL 6442/2016), de Nilson Leitão (PSDB-MT). Seu texto dúbio e mal escrito abre porteira para a remuneração não-salarial, o que é claramente inconstitucional. Esse ponto, se aprovado dessa forma, seria derrubado rapidamente pela Suprema Corte. Mas esse é o bode na sala, a distração.

O coração do projeto quer diminuir a proteção à dignidade do trabalhador no campo, cortando elementos que protegem sua saúde e segurança. O que inclui estender a jornada de trabalho de acordo com a necessidade do patrão, abrir a possibilidade de vender integralmente as férias e de "adiar" os finais de semana, tornar facultativo banheiro, água potável e local de descanso para frentes de trabalho de "difícil acesso", reduzir o adicional noturno, entre várias outras propostas.

Audiência pública com parlamentares da base aliada no Palácio do Planalto

Ao mesmo tempo, o parecer substitutivo do deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), relator do projeto de Reforma Trabalhista (projeto de lei nº 6787/2016), aprovado na Câmara dos Deputados, chegou a propor uma medida que dificultava a responsabilização de empresas por trabalho escravo.

A proposta afastava "a responsabilidade solidária ou subsidiária de débitos e multas trabalhistas" quando "empregadores da mesma cadeia produtiva" estabelecem negócio jurídico "ainda que em regime de exclusividade". Traduzindo: seria difícil processar empresas que deixam sua produção a cargo de terceirizadas que usam trabalho escravo. Como ocorre com nomes conhecidos do vestuário ou da construção civil. Após intensa pressão social, esse item foi alterado no projeto que, agora, tramita no Senado como PLC 38/2017.

A reforma quantifica quanto custa um trabalhador, ao limitar o valor de indenização a 50 vezes de seu último salário. No caso de quem ganha um salário mínimo isso equivalerá, no máximo, a R$ 46.850,00. Também estabelece contratos intermitentes, em que o trabalhador pode ser chamado a qualquer hora, não sabendo quanto ganhará no final do mês e de quanto será seu descanso, entre outras mudanças.

Isso sem contar que há, pelo menos, três propostas no Congresso Nacional para reduzir o conceito de trabalho escravo. Um deles é o projeto de lei 3842/2012, do deputado federal Moreira Mendes (PSD-RO). As outra estão no projeto de atualização do Código Penal, por sugestão dos então senadores Luiz Henrique da Silveira (PMDB-SC) e Blairo Maggi (PR-MT), hoje ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e no projeto que regulamenta a emenda 81/2014 (antiga PEC do Trabalho Escravo, que prevê o confisco de propriedades em que trabalho escravo for encontrado e sua destinação à reforma agrária ou ao uso habitacional urbano), por sugestão do senador Romero Jucá (PMDB-RR) – hoje, relator da Reforma Trabalhista.

Todos querem retirar condições degradantes e jornada exaustiva do artigo 149 do Código Penal, que conceitua o crime. Hoje, são quatro elementos que podem definir escravidão contemporânea no Brasil: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes (abaixo da linha de dignidade, que põem em risco a saúde, a segurança e a vida do trabalhador) e jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde, segurança vida).

Querem que escravagista seja apenas quem usa pelourinho, chicote e grilhões e não quem nega a dignidade aos trabalhadores. Com a mudança no conceito, milhares de pessoas que, hoje, estão sob escravidão simplesmente vão se tornar invisíveis. Em outras palavras, querem abolir a escravidão chamando-a por outro nome. Por exemplo, "probleminha trabalhista".

Por fim, vale lembrar que não é apenas a Lei Áurea que está ameaçada pelo governo federal e o Congresso Nacional, mas também sua antecessora, a Lei Saraiva-Cotegipe, conhecida como Lei dos Sexagenários (Lei Imperial 3270/1885). Ela garantiu liberdade às pessoas escravizadas com mais de 65 anos.

Apesar de ser bastante rechaçada pelos escravagistas na época, teve pouco efeito prático, seja porque nessa idade os trabalhadores já haviam sido moídos a vida inteira e não conseguiam produzir mais, seja porque os fazendeiros registravam as pessoas com idades mais novas do que realmente tinham para fugir da lei.

Neste momento, o governo federal e o Congresso Nacional estão querendo extinguir a alforria aos 65 dos idosos pobres através da Reforma da Previdência.

Quem alcança 65 anos e tem renda per capita familiar inferior a 25% do salário mínimo, hoje, tem direito a solicitar o Benefício de Prestação Continuada (BPC). O governo Michel Temer propôs subir para 70 anos a idade mínima e o relator da reforma, Arthur Maia (PPS-BA) para 68. Esse pessoal, que é quem mais precisa de ajuda do Estado porque trabalhou a vida inteira e não conseguiu se aposentar, será punido, tendo que esperar mais tempo.

E quem for pobre e não conseguir contribuir por 25 anos (trabalhadores assalariados urbanos e rurais) e 15 anos (trabalhadores rurais da economia familiar), mas tiver renda familiar apenas um pouco mais acima do limite estabelecido pelo governo, não terá acesso ao salário mínimo do BPC. Ou seja, ficará no limbo – sem receber o benefício, mas sem conseguir se aposentar. Dados da Previdência Social mostram que 80% da população não conseguem contribuir por 25 anos.

É surpreendente que, prestes a completar 129 anos da Lei Áurea, neste sábado (13), tenhamos ainda que nos preocupar com esse tipo de coisa.

Considerando a violência aberta contra indígenas e trabalhadores rurais e o poder de influência da bancada ruralista sobre o governo federal em nome da governabilidade e das reformas, podemos supor que estamos preparando um retorno triunfal ao Brasil Império.

Só falta extinguir a República. Desconfio que, desde que se mantenha o feriado, a maior parte da população nem irá notar a diferença.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto