Temer, JBS e a promiscuidade que transforma a vida no campo um inferno
Leonardo Sakamoto
21/05/2017 13h11
Enquanto as elites política e econômica do país analisam se Temer ainda é útil para entregar as Reformas Trabalhista e da Previdência e para segurar as investigações da Lava Jato ou se já passou da hora de substitui-lo por outro que possa, as delações da JBS trouxeram mais um capítulo da promiscuidade entre o poder público e setores do agronegócio brasileiro.
Não é de hoje que a cadeia de produção de proteína animal, por sua natureza, influência política e forma de atuação, tem causado trabalho análogo ao de escravo, superexploração e morte de operários em unidades de processamento de carnes, violência contra populações tradicionais, assassinato de trabalhadores rurais, crimes ambientais, roubo de terras públicas, contaminação de reservas de água, sofrimento desnecessário de animais.
E não é de hoje que a representação política financiada por determinados setores do agronegócio tem atuado para impedir a aprovação de leis ou tornar sem eficácia os instrumentos destinados a fiscaliza-las. Internamente, esses representantes têm suas divisões e diferenças e nem sempre há consenso – basta ver as rusgas entre a senadora Kátia Abreu, o ministro Blairo Maggi e Joesley Batista, dono da JBS. Mas, quando necessário, os diferentes grupos representados nessa cadeia são coesos o suficiente para agir em bloco.
As delações do JBS causaram espanto em muitos quando mostraram como funcionava a entrega de milhões a políticos. Mas bastava olhar para as listas de doações da empresa nas campanhas eleitorais de 2014, disponíveis no Tribunal Superior Eleitoral, para ver como um rio caudaloso de dinheiro fluiu para quase todos os partidos políticos. Incluindo aos "heróis" da esquerda e aos "mitos" da direita.
Como já escrevi aqui antes, nos últimos 20 anos, estive em mais ações de resgate de pessoas escravizadas em fazendas de gado do que gostaria, vi trabalhadores que perderam partes do corpo em frigoríficos que nunca vou esquecer, presenciei a realidade de indígenas vítimas de violência por parte de produtores que fornecem a grandes grupos. Em frente a muitas agroindústrias e fazendas, as mesmas placas avisando sobre o financiamento público. Ao mesmo tempo, tenho dialogado com grandes empresas do setor, verificando que melhorias têm acontecido – mas não no ritmo necessário para garantir que dignidade não seja algo do qual apenas a próxima geração irá se beneficiar.
É possível afirmar que essa promiscuidade entre o setor público e parte do agronegócio tem servido para manter um modelo de desenvolvimento arcaico sob a justificativa da soberania nacional. A mesma usada quando a ditadura civil-militar passou o rolo compressor por cima de famílias do campo. Modelo que não só impossibilita uma reforma agrária ampla, mas leva a mais concentração fundiária. E à concentração do capital.
A ideia era criar um gigante daqui para não ser devorado pelos estrangeiros. Mas o gigante brasileiro (de mudança para os Estados Unidos e a Holanda) também devora brasileiros.
Pois a exploração do grande capital nacional sobre trabalhadores e meio ambiente no Brasil não é diferente do Centro mundial explorar a Periferia. Os resultados são iguais e a história está aí para mostrar. Aliás, o capitalismo na Periferia, por ignorar regras do jogo e as reclamações da sociedade, tem sido mais truculento que o capitalismo no Centro. É inocência pensar que certas empresas brasileiras atuam, necessariamente, em nome de um "interesse nacional". Atuam no interesse de seus controladores e do mercado.
E a moral que o mercado adota é a moral que ele cria para si mesmo.
Muita coisa mudou desde que os verde-oliva deixaram o poder, mas mantivemos um desenvolvimento a todo o custo para produzir e, assim, exportar, gerar divisas, pagar juros de empréstimos, e assim poder contrair mais empréstimos e investir na produção. Não sem antes pagar e receber propina, para eleger alguns e enriquecer uns poucos. E destruir outro lugar e outra comunidade. Que pode ser indígena, mas também ribeirinha, camponesa, quilombola, caiçara ou mesmo moradores pobres das periferias das cidades. Ou vender carne vencida.
Claro que isso não é monopólio desse setor. A Operação Lava Jato trouxe a público as falcatruas da construção civil e, dentre elas, o projeto de Belo Monte. Muito antes das obras da usina hidrelétrica começarem, movimentos sociais, organizações da sociedade civil e entidades que congregam povos indígenas vieram a público alertar sobre a tragédia que seria essa construção. E, por anos, mantiveram-se protestando, dentro e fora do Brasil, nas ruas, no Congresso, na Justiça, contando apenas com a ajuda do Ministério Público Federal do Pará e de alguns parlamentares que resistiam e defendiam os direitos humanos.
Ao mesmo tempo, eram olhados com desprezo por grande parte do governo federal e da oposição. Pois os dois lados compartilhavam da mesma visão de desenvolvimento predatório. E os dois lados dividiam os mesmo recursos de empreiteiras.
Ninguém aqui está defendendo o fechamento de setores importantes da economia. Essa é a estrutura que temos e vamos ter que trabalhar com ela, quer gostemos ou não, para evitar mais desemprego e problemas sociais.
Mas já passou da hora de nosso capitalismo seguir um mínimo de regras para a compra e venda da força de trabalho, para o respeito ao meio ambiente, para a garantia de direitos a comunidades tradicionais e, claro, na qualidade do produto que ele entrega ao consumidor final.
Momentos como este deveriam servir não apenas para combater a corrupção, mas também para jogar luz sobre o funcionamento da engrenagem abastecida por esse dinheiro. E pensar em como colocar em marcha uma Reforma Política, que consiga repensar o sistema para manter – a uma saudável distância – a relação entre o público e o privado.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.