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Proposta de nova Constituição não irá "salvar" o Brasil, mas desmontá-lo

Leonardo Sakamoto

23/05/2017 10h39

Renan Calheiros (PMDB-AL), ex-presidente do Senado Federal e líder do partido, ao defender a renúncia de Michel Temer, na noite desta segunda (22), aproveitou para propor a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte no ano que vem. Ou seja, cidadãos eleitos com o mandato específico de fazer uma nova Constituição Federal. E ele não é o único com a proposta, que conta com adeptos em seu partido e em outros da base aliada do governo. A frequência com a qual o tema aparece em conversas reservadas entre lideranças políticas e econômicas tem aumentado na crise, segundo interlocutores deste blog.

Neste momento, em que a democracia representativa está em descrédito, em que políticos defendem os próprios interesses ao invés das demandas e necessidades do povo, a Constituição Federal segue sendo uma boia de salvação num mar de esgoto. Porém, essa boia, que garante um mínimo de dignidade, está na mira de quem quer reduzir o Estado que deveria cuidar dos mais pobres para aumentar o Estado que apoia e financia os mais ricos.

O grande problema da Constituição não é estar ultrapassada, como afirmam alguns que temem que ela saia totalmente do papel. Foi nunca ter sido efetivada plenamente, seja pela falta de regulamentação, seja pelo não cumprimento da letra escrita.

Temos visto políticos, empresários e nobres juristas defendendo uma revisão profunda da Carta Magna para a remoção de determinados entraves que impedem o desenvolvimento da nação. Leia-se como "entraves" os instrumentos para proteger minorias, por exemplo, em nome de um suposto "bem-estar" da maioria.

Utiliza-se a necessidade urgente de uma Reforma Política – discussão profunda a fim de atualizar a representação política e o processo eleitoral, incluindo aí seu financiamento- ou mesmo de uma Reforma Tributária, que traga um mínimo de justiça social, como justificativas para a convocação de uma Assembleia Constituinte ampla, que revise todos os direitos e deveres firmados há quase 30 anos.

Ou seja, a mesma classe política do mar de esgoto quer ser a responsável por reeditar todos os fundamentos do país.

Hoje, lobistas que sussurram nos corredores do Congresso Nacional, cutucam daqui e dali, visando a mudanças que diminuam a proteção ao trabalhador e sua aposentadoria. Outros pressionam pela revisão das regras na área fundiária, reforçando a necessidade de se garantir o direito de propriedade mesmo sem função social. Isso sem contar os que querem alterações profundas para que a concentração de capital siga sendo um dos pilares de nossa democracia. Noves fora, grupos religiosos que sonham transformar o país em uma teocracia, proibindo a interpretação do Supremo Tribunal Federal a favor dos direitos previstos em 1988.

E há aqueles que defendem que o artigo 3o, que afirma que, além de garantir o desenvolvimento nacional", também são objetivos fundamentais da República "construir uma sociedade livre, justa e solidária", "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdade sociais e regionais" e "promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação", é um libelo comunista.

A Constituição de 1988 foi um compromisso de equilíbrio, um pacto político que criou regras de convivência entre grupos e classes sociais após o fim da ditadura. O discurso de uma nova e abrangente Assembleia Constituinte, que vez ou outra volta com força ao Congresso, significa repactuar a sociedade. Mas para quê repactuar uma sociedade que não conseguiu colocar em prática o que propôs? E não o fez não por que não podia, mas porque não quis mexer com estruturas que garantem muito a poucos e pouco a muitos. Pelo contrário, uma mudança ampla, neste momento, interessa apenas a quem não deseja mais o incômodo da sociedade pedindo para a efetivação da Constituição, que passa pelo combate a injustiças.

O Brasil, ainda olhando paras as feridas de 21 anos de ditadura militar, sentou-se para escrever uma Constituição. É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que sofrimento igual nunca mais se repita. O problema é que parte da geração que ajudou a escrever aquele texto parece que se esqueceu dos debates que levaram até ele, em nome da governabilidade quando assumiu o poder. E tentaram enterrar a razão de ser do Estado brasileiro atrás de negociatas e corrupção. Para permanecer no poder ou para alcançá-lo.

Dizem que o poder público não consegue por em prática os direitos previstos na Constituição por não ter recursos. Ironicamente, se a Constituição fosse seguida, incluindo os princípios de justiça social, o que inclui redistribuição, e de priorização de políticas aos mais vulneráveis, haveria mais recursos para efetivar os direitos. Incluindo, aqui, a garantia de uma Previdência Social financeiramente saudável.

Não precisamos reinventar todas as regras em uma Assembleia Constituinte ampla, que jogue espírito da Constituição Federal de 1988 no lixo. Precisamos tirar o que está lá do papel. E há demandas por reformas, desde que amplamente discutidas com a população e não feitas à toque de caixa como acontece hoje. Começando por uma Reforma Política, que poderia ser realizada por assembleia específica (com pessoas eleitas para esse fim e que não tenham mandato parlamentar) com o objetivo de tentar tirar a nossa democracia representativa da UTI.

Aquilo que é vendido como "novo" nem sempre nos leva ao futuro. Não raro, é uma meia volta em direção ao passado.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto