O que a agressão contra Miriam Leitão diz sobre nossa triste intolerância
Leonardo Sakamoto
13/06/2017 18h12
A jornalista Miriam Leitão relata, em sua coluna desta terça (13), como foi vítima de gritos, xingamentos, ameaças e palavras de ordem contra ela durante o voo Brasília – Rio vindo de pessoas que estavam vestidas com camisas do congresso do PT. Ela, que foi torturada por lutar contra a ditadura militar, também ouviu gritos de "terrorista" vindo de militantes.
A companhia aérea Avianca, segundo seu relato, nada fez para tentar acalmar o grupo. Tentou apenas mudar a vítima de lugar no avião – o que é bastante representativo de como o Brasil age diante da necessidade de garantir os direitos de minorias.
A imprensa, como qualquer outra instituição, pode e deve ser criticada, mas isso nunca deve descambar para ataques, intimidação e violência. Jogar pedras contra o prédio de uma redação ou atacar repórteres enquanto realizam seu trabalho ou durante um voo é estúpido e não aceitável sob nenhuma hipótese.
A personificação do descontentamento em uma pessoa a uma cobertura, uma opinião editorial ou a situação da economia e da política como um todo é uma idiotice sem tamanho e inadmissível. É típico de um povo dividido em torcidas organizadas fundamentalistas que comemoram a condução coercitiva de Eduardo Guimarães para prestar depoimento à Polícia Federal ou a quebra do sigilo de fonte de Reinaldo Azevedo.
Infelizmente, parte da sociedade não entende um ataque a um jornalista como um ataque à liberdade de expressão, um pilar da democracia. Vê isso como uma manifestação do descontentamento ao estado das coisas. Incendiada por conteúdos superficiais distribuídos principalmente por páginas e sites anônimos em redes sociais e não acostumada ao debate público de ideias, à aceitação da diferença de opinião e à empatia pelo outro, parte para a ignorância.
Li comentários na rede social de pessoas usando frases como "acho ruim o que aconteceu, mas ela mereceu". O uso do "mas" tem apenas um sentido nesse tipo de sentença: justificar a violência e alimentar a intolerância. Nada além disso.
Porém, e é importante que se diga, não são apenas os agressores diretos de jornalistas que deveriam ser responsabilizados, mas devemos também lembrar de todos que insuflam violência contra profissionais de imprensa – seja ela tradicional ou independente, de direita ou esquerda, conservadora ou progressista, uma equipe de TV ou uma blogueira solitária. Da mesma forma que algumas lideranças religiosas podem, através de discursos de intolerância, armar pessoas comuns para agir contra inocentes em casos de homofobia, machismo, entre outros, o mesmo pode ocorrer contra jornalistas – reservadas as devidas proporções.
Quando um indivíduo ou um grupo parte para o linchamento de uma pessoa, usa – não raro – o discurso de que está fazendo Justiça, baseado em um entendimento do que é certo, do que é errado e do que é inaceitável. Ao final do dia, ficam felizes quando postam a informação em suas redes sociais, sentindo-se heróis. Quando, na verdade, são uma turba idiotizada.
Através de linchamentos públicos, rasgamos o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Teoricamente, em algum momento da história humana, abrimos mão de resolver as coisas por conta própria para impedir que nos devoremos. O sistema que criamos para isso não é perfeito, longe disso, mas é o que tem para hoje. Seria bom, portanto, que começássemos a respeita-lo.
Acreditamos que nosso ponto de vista está correto, mas isso não faz dele uma Verdade Absoluta – até porque verdades absolutas não existem. Uma outra pessoa pode defender que a forma mais correta de acabar com a fome, a violência, as guerras, a injustiça seja por outro caminho. Desse enfrentamento de ideias e de propostas, que pode ser duro, sairá um vetor resultante que apontará para uma direção, dependendo da correlação de forças envolvidas, dos atores dedicados a isso, da aceitação dessas propostas pelo restante de uma sociedade.
Não acredito que um determinado pacote de políticas seja o melhor caminho para o país, mas há quem diga que eles são. Ótimo, vamos discutir os argumentos que embasam as diferentes e não travar a discussão. Ou pior, defender o fechamento de um veículo de comunicação. Rebate-se uma voz sempre com outra voz, na tentativa de construir um diálogo, e não com a imposição do silêncio.
É um Fla-Flu, um nós contra eles cego, que utiliza técnica de desumanização de quem participa do debate público, transformando pessoas em coisas descartáveis. Muitos simplesmente repetem mantras que leem na internet, ouvem em bares ou veem na igreja e não param para pensar se concordam ou não realmente com aquilo.
As relações que se estabelecem no "lado de fora" da internet deveriam ser uma das melhores formas de rompermos a limitação do contato com a diferença criada pelos algoritmos das redes sociais – que mostram em nossas timelines aquilo que gostaríamos de ver, tornando o mundo um lugar mais quentinho. Pois bolhas digitais matam, aos poucos, a empatia. Ao invés disso, temos visto muita raiva transbordar para fora da rede, transferindo comportamentos do ambiente digital, como perseguições e ataques de xingamentos coletivos, para a vida offline. Corremos o risco, ao final, de ficar com o pior dos dois mundos.
Creio que a pergunta que fica é: Queremos realmente ter uma democracia ou só a usamos formalmente para encobrir nossa total incapacidade de fugir de nossa natureza de ódio e intolerância?
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.