Aécio não foi comido, só mastigado. Justiça gosta mais de carne de segunda
Leonardo Sakamoto
01/07/2017 12h09
Concordo plenamente com o senador Romero Jucá (PMDB-RR) que, certa vez, explicou: "Suruba é suruba. Aí é todo mundo na suruba, não uma suruba selecionada".
A declaração foi uma crítica à proposta do Supremo Tribunal Federal de restringir o foro privilegiado de políticos apenas a fatos acontecidos no mandato em exercício, não abrangendo o que veio antes. Ele havia defendido que a restrição do foro valesse para todo mundo, incluindo o Judiciário e Ministério Público, ou para ninguém.
Depois da repercussão negativa, voltou atrás que a declaração estava fora de contexto e, na verdade, estava citando uma música do finado grupo Mamonas Assassinas. Talvez o trecho a que ele se referia, na música Vira-Vira, era "Neste raio de suruba, já me passaram a mão na bunda / E ainda não comi ninguém!".
Essa história de quem comeu quem remete à já clássica e icônica gravação da conversa que Jucá teve com Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, que foi divulgada pela Folha de S.Paulo, em maio de 2016. Foi nela que eles deram o roteiro do que aconteceria com o país, "botar o Michel, num grande acordo nacional", "com o Supremo, com tudo".
Ele afirmou que havia "caído a ficha" de líderes do PSDB sobre o potencial de danos da Lava Jato: "Todo mundo na bandeja para ser comido". Sérgio Machado, que era do PSDB antes de se filiar ao PMDB, afirmou então que "o primeiro a ser comido vai ser o Aécio".
A lama cobriu o senador mineiro até o pescoço quando notícias sobre esquemas do qual fazia parte foram aflorando uma a uma. Hoje, ele se pergunta se terá votos para se eleger deputado federal. Quanto a ser preso, creio que isso será mais difícil, porque o "sorteio" mandou parte de seus casos para a mão de seu querido amigo Gilmar Mendes.
Aécio não foi comido. Mastigaram-no bem, é verdade, mas o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, não deixou que o engolissem, mandando o sistema cuspir para fora. Qual o motivo? Carne de segunda certamente Aécio não é, pois o próprio ministro do STF deixou claro isso, ressaltando a sua biografia no texto da decisão que autorizou o mineiro a retornar às suas funções no Senado. A carne de Aécio é premium, maturada, branca, rica, de família. É Friboi, como a de Temer. Deve ter dado uma bela indigestão no estômago bruto do sistema Judiciário brasileiro, acostumado a consumir carne jovem, negra e pobre, abatida de forma clandestina pela polícia, pelos traficantes ou pelas milícias.
Quem está faltando nessa suruba é o povaréu. Por enquanto, os que resolvem reclamar do come-come em Brasília e de suas consequências para a população (como as Reformas Trabalhista e da Previdência que tiram dos pobres para manter o dos ricos) são xingados de vagabundos ou levam até bala de verdade das forças de segurança. Se os mais pobres se cansassem de ser xepa e, jogando para o ar o respeito às regras e às leis e resolverem parar de sentir apenas dor para curtir um pouco do prazer que o povo do andar de cima sente desde Martim Afonso de Souza, será uma zorra.
Mas não é isso o que acontece. De jornais estrangeiros a pesquisadores brasileiros, muitos são os que tentam encontrar respostas para o fato das ruas não estarem coalhadas de gente, conservadoras e progressistas, a fim de pedir a cabeça de Michel Temer e de seus aliados. Das tantas explicações razoáveis, a melhor delas é o desalento, diante das perspectivas econômicas e da qualidade de vida; diante da certeza que outra pessoa colocada no não seria mais ético e competente.
Com isso, o país passa por um processo de derretimento de suas instituições – o que é a pior consequência do uso do Estado, à luz do dia, para proteger envolvidos em corrupção. O respeito da população quanto a elas, que já era baixo, vai reduzindo, processo que não pode ser freado da noite para o dia.
Instituições são responsáveis por ajudar a manter as coisas funcionando, seja através da força ou do diálogo, ao mostrar as vantagens em seguir as regras ou deixar bem claro o que acontece com quem as subverte. E quem estabeleceu a regras? Bem, se você está perguntando isso é porque não faz parte do seleto grupo que as fez. Apenas as aceita, por bem ou por mal.
A resposta para essa situação demandaria uma nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos. Mas a reação em cadeia que as coisas tomaram parece ser inevitável e nos levará inexoravelmente para algum lugar escuro que não imagino qual seja. Tenho receio de que, seguindo nessa toada, o país que sair das eleições gerais do ano que vem seja um local inóspito, daqueles em que formas simples, limitadas, mas resistentes de vida dominam todos os espaços.
O problema é que quando, à luz do dia, pastores não demonstram arrependimento ao serem denunciados por usar igrejas a fim de lavar dinheiro; famílias abandonam o diálogo e travam guerras internas baseado em consumo burro de desinformação em redes sociais; grandes empresários pedem que investigações contra a corrupção tenham um ponto final urgente para não atrapalharem a economia; atores sociais que atuaram em defesa do impeachment defendem calma diante da corrupção do novo governo; figurões do governo contratam parentes, manipulam vantagens para a construção de seus apartamentos, carregam malas de dinheiros, achacam empresários abertamente, deixam claro que, para eles, as leis são diferentes; quando a Justiça adota medidas diferentes para o mesmo crime cometido por cidadãos diferentes, agindo claramente para salvar a de seus aliados, o cidadão comum passa a se perguntar: por que só eu tenho que seguir o idiota que vai seguir as regras?
Por conta de uma injustiça estrutural, os trabalhadores não podem manifestar seu profundo descontentamento com um governo negando-se a pagar seus impostos, que seria uma quebra profunda nessas regras. Sonegação em massa com objetivo político, na prática, equivaleria a um tipo diferente de greve. Ao invés de evitar produzir riqueza, buscaria-se congelar as atividades do Estado como um alerta de desagregação social iminente.
O ponto é que, caso você seja assalariado da classe média, seu imposto de renda é descontado no seu pagamento mensalmente, o que impede qualquer ação de boicote. Se for pobre e viver de bicos, provavelmente estaria na faixa de isenção. A maioria dos outros impostos estão embutidos nos produtos que compramos diariamente para viver.
Digo injustiça pois os mais ricos conseguem burlar o recolhimento não apenas de impostos e contribuições obrigatórias deles, mas também dos nossos que cabem a eles fazer. Basta ver a quantidade de trabalhadores que, quando foram sacar o FGTS descobriram que suas contas estavam vazias. Ou os patrões picaretas que descontam o INSS dos empregados, mas embolsam esse valor e nem recolhem a parte da empresa. Depois, aparecem na TV defendendo a Reforma da Previdência.
Quando são pegos sonegando milhões, entram em programas de refinanciamento a perder de vista. Ao contrário de você, que está ferrado se cair na malha final e não tiver uma boa justificativa.
Além disso, há muitos ricos que afirmam, na maior cara de pau, que a sonegação é sua forma de protestar contra a alta carga tributária do país. Na verdade, é sua forma de ganhar mais dinheiro ou de manter sua competitividade. Seria interessante pensar o que aconteceria se os cidadãos pudessem, de forma coletiva e simultânea, bloquear os impostos. Sofreriam com a interrupção de serviços públicos, mas o desespero e o pânico em palácios e parlamentos seria enorme. Um exercício hipotético, claro, uma vez que não há consciência social suficientemente grande para isso e os líderes do movimento seriam presos antes que o boicote acontecesse.
Suruba é suruba. Mas, realmente, não é para todo mundo. Por isso, como disse Temer, "não pense em crise, trabalhe".
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.