Topo

Pregar racismo não é exercer direito à opinião. É proferir discurso de ódio

Leonardo Sakamoto

15/08/2017 21h24

Momento em que manifestantes que protestavam contra marcha de racistas e nazistas são atropelados em Charlottesville . Foto: Ryan M. Kelly / AP

Muita gente na internet confunde opinião com discurso de ódio. É um erro bem comum quando não se está acostumado às regras do debate público de ideias.

Retomar essa discussão neste momento – em que racistas e autodeclarados neonazistas carregam tochas e entoam palavras de ordem contra negros, população LGBT, migrantes, islâmicos e judeus, nos Estados Unidos, e a violência cresce contra indígenas, quilombolas, negros, gays, lésbicas, transexuais, população em situação de rua, entre outros, por aqui – é importante.

Na internet, o anonimato traz aquela sensação quentinha de segurança e, por conta disso, não raro, as pessoas extrapolam. Sentem-se livres de punição pelos seus atos. Afinal de contas, na rede é menos simples (mas não impossível) identificar quem falou ou fez algo bizarro.

O direito ao livre exercício de pensamento e o direito à liberdade de expressão são garantidos pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais que o país assinou. E, da mesma forma, as pessoas têm o direito a ter suas integridades física e psicológica respeitadas. Ou seja, temos que encontrar o equilíbrio entre o direito a ter opinião e o direito a ver garantida a dignidade.

Nessa balança, deve-se considerar que a liberdade de expressão não é um direito fundamental absoluto. Porque não há direitos fundamentais absolutos. Nem o direito à vida é. Prova disso é o direito à legítima defesa. Porque, a partir do momento em que alguém abusa de sua liberdade de expressão, espalhando o ódio e incitando à violência, isso pode trazer consequências mais graves à vida de outras pessoas.

Alguns políticos, padres, pastores e comunicadores dizem que não incitam a violência. Não é a mão deles que segura a faca, o revólver ou a tocha, mas é a sobreposição de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna o ato de esfaquear, atirar e atacar banais. Ou, melhor dizendo, "necessários", quase um pedido do céu. São pessoas assim que alimentam lentamente a intolerância, que depois será consumida pelos malucos que fazem o serviço sujo.

Mas, aí, temos uma informação importante: a liberdade de expressão não admite censura prévia. Ou seja, apesar de alguns juízes não entenderem isso e darem sentenças aqui e ali para calar de antemão biografias, reportagens, propagandas, movimentos sociais, a lei garante que as pessoas não sejam proibidas de dizer o que pensam.

Contudo, há o outro lado da moeda: as pessoas são sim responsáveis pelo impacto que a divulgação de suas opiniões causa. Como é o caso de dirigir a um grupo específico um sentimento de ódio, propondo a restrição de seus direitos e até sua extirpação social.

E toda pessoa que emitir um discurso de ódio, está sujeita a sofrer as consequências trazidas pelo Estado ou pela própria sociedade: pagar uma indenização, ir para a cadeia, perder o emprego, ter sua candidatura cassada. Afinal, o exercício das liberdades pressupõe responsabilidade. Quem não consegue conviver com isso, não deveria nem fazer parte do debate público, recolhendo-se junto com sua raiva e ódio ao seu cantinho.

Como você expõe sua opinião? Privilegiando o diálogo de diferentes e buscando uma convivência pacífica ou conclamando as pessoas, com base no medo e na desinformação, para desrespeitar ainda mais aqueles vistos como diferentes?

Por fim, muitos interpretam opiniões com críticas feitas por terceiros como discursos de ódio. E, ao mesmo tempo, acreditam que os discursos de ódio que eles mesmos proferem são apenas críticas e opiniões. Ou seja, ódio é tudo aquilo com o qual não concordam.

Sei que a discussão é complexa porque há uma carga grande de subjetividade e relatividade que envolvem pontos de vista e lugares de fala. Já tratei aqui uma pancada de vezes sobre a difícil caminhada para aceitarmos o outro ao invés de querermos arrancar seus olhos, fritar seu fígado em óleo quente e usar seus órgãos genitais como isca para peixe.

A gradação dos limites e balizas varia de acordo com cada sociedade, levando em conta seu caldo cultural e sua experiência social. Além disso,  somos seres racionais – pelo menos o bastante para não encarar qualquer contestação às nossas opiniões ou ao nosso modo de vida como um ataque à dignidade da humanidade e o armagedom.

Claro que deixamos escapar, com isso, os profissionais da retórica da provocação do ódio: aqueles que montam seus discursos de forma competente para que seus leitores e ouvintes sintam raiva e queiram exterminar outros grupos sociais sem que, para isso, precise ele próprio dizer nada. Esse tipo de profissional é fascinante por duas razões: primeiro, o discurso de ódio propriamente dito fica não por sua conta, mas de seus comentaristas ou grupos de apoio – formalmente, ele é apenas a faísca que dispara o processo. E, em segundo lugar, pois, quando acusado tende a usar como resposta não a defesa da própria liberdade de expressão, mas que o outro é que está provocando o ódio contra ele.

Devemos dar o braço a torcer porque são geniais. São comunicadores, políticos e religiosos e estão no nosso dia a dia, nos fazendo sentir e proferir ódio pelo que não conhecemos sem que sejamos capazes de perceber.

Cada pessoa que duvida de todos os discursos (inclusive deste que vos escreve), não se deixa enganar pelos que provocam sem sujar as mãos e ouve as razões dos que pensam e vivem de uma maneira diferente sem achar que eles são a representação do mal certamente tem mais facilidade de identificar o que é ódio e o que é opinião.

Porque consegue se colocar no lugar das pessoas que são alvo da agressão e entende que não estamos falando de criar grupos imunes a críticas, mas de evitar que grupos sejam mortos ou violentados nesse processo.

Organizei este "teste" aqui no blog tempos atrás. Vamos lá, respondam rápido só para treinar a reflexão: é discurso de ódio ou é opinião?

1) Um texto propõe exterminar, trucidar, torturar, espancar, linchar uma pessoa ou um grupo de pessoas pelo que são ou representam.
a) É discurso de ódio
b) É opinião

2) Um comentarista faz duríssimas acusações a alguém ou alguma coisa que você respeita, mas não incita violência de terceiros contra ela.
a) É discurso de ódio
b) É opinião

3) Alguém tuíta dizendo que Deus não existe.
a) É discurso de ódio
b) É opinião

4) Aliás, alguém tuíta dizendo que, em sua opinião, Deus é mulher e negra.
a) É discurso de ódio
b) É opinião

5) Um mensagem na lista de discussão convoca as pessoas a perseguirem, assediarem e até atacarem jornalistas.
a) É discurso de ódio
b) É opinião

6) Um post ridiculariza o lugar onde você nasceu, independentemente se com razão ou não.
a) É discurso de ódio
b) É opinião

7) Um político diz que alguém não merece ser estuprada.
a) É discurso de ódio
b) É opinião

8) Alguém defende confiscar livros de história de autores islâmicos e queimá-los em praça pública para proteger as crianças.
a) É discurso de ódio
b) É opinião

9) Um candidato conclama que a população deve ir para cima dos homossexuais que lutam por seus direitos.
a) É discurso de ódio
b) É opinião

10) Alguém ameaça professores por tratarem de gênero em sala de aula.
a) É discurso de ódio
b) É opinião

Respostas: Considerando o ponto de vista de respeito aos direitos humanos conforme prevê a Constituição Federal e a jurisprudência brasileira, os resultados seriam 1) a; 2) b; 3) b; 4) b; 5) a; 6) b; 7) a; 8) a; 9) a; 10) a.

Mas o melhor dessas perguntas não é a resposta, mas o caminho que cada um de nós faz até chegar a ela e a percepção de que o mais importante é entender que nossa liberdade pessoal para falar é tão importante quanto o direito à dignidade dos alvos de nossas críticas.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Pregar racismo não é exercer direito à opinião. É proferir discurso de ódio - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto