Com fiscalização capenga, Brasil quer crescer com trabalhador sem direitos
Leonardo Sakamoto
01/09/2017 12h36
A taxa de desemprego no Brasil caiu apoiada no crescimento do trabalho informal e no trabalho por conta própria. Enquanto isso, o número de empregados com carteira permaneceu praticamente estável.
Foram 468 mil pessoas que conseguiram empregos sem carteira assinada e 351 mil que passaram a trabalhar por conta própria no trimestre terminado em julho em relação ao anterior. Os dados do IBGE mostram queda de 5,1% no total de pessoas desocupadas nesse trimestre, atingindo uma taxa de desocupação de 12,8% – ou 13,3 milhões de pessoas.
A retomada do crescimento no emprego está ocorrendo através de postos de trabalho "precarizados", como outras pesquisas anteriores já haviam apontado, que não garantem férias remuneradas, 13o salário, descanso semanal, licença maternidade, limite de jornada, enfim, nenhum dos direitos mais básicos.
Nesse contexto, a inspeção do trabalho é fundamental para regularizar a situação e impedir que a parte mais vulnerável (o trabalhador) seja engolido pela crise. Mas o contingenciamento de recursos públicos atingiu essa área fundamental. Há, neste momento, uma espécie de "pane seca" por falta de recursos para combustível, veículos, deslocamento aéreo e diárias para hospedagem e alimentação dos funcionários públicos.
Na maioria das Superintendências Regionais do Trabalho, os recursos para fiscalização já acabaram. Em outras, há sobras de caixa, como no Estado de São Paulo, o que possibilita a continuidade da inspeção por enquanto.
Devido a críticas que circularam na imprensa, o Ministério do Trabalho vem fazendo remanejamentos internos para garantir a continuidade das ações dos grupos móveis de fiscalização – responsáveis por resgatar trabalhadores em condições análogas às de escravos. O Ministério Público do Trabalho, inclusive, moveu uma ação contra o órgão para obrigá-lo, na Justiça, a manter essas operações.
Com exceção de trabalho escravo, não há novos recursos em caixa para fiscalizações em território nacional que tiverem que ser feitas fora das capitais ou das cidades em que exista um escritório regional do ministério. E, ainda assim, desde que os auditores fiscais não precisem de combustível para deslocamento.
Isso inclui fiscalizações para verificar irregularidades no trabalho rural, em grandes obras de engenharia, no trabalho urbano em cidades menores, com seus portos e canteiros de obras da construção civil. A paralisação afeta até a checagem de ocorrência de acidentes que resultaram em mortes e da situação de emprego de pessoas com deficiência. Remanejamentos internos devem ser realizados para garantir a continuidade das operações em andamento, mas não há como iniciar o atendimento a novas denúncias ou mesmo manter a inspeção de rotina.
O ministro do Trabalho, de acordo com fontes ouvidas pelo blog, está se empenhando em garantir os recursos para a fiscalização, mas a decisão sobre o empenho tem sido externa ao ministério.
A importância da fiscalização vai além dos postos de trabalho informais. Nem sempre quem trabalha por conta própria é um empreendedor começando um negócio que lhe permita garantir autonomia econômica. Não raro são trabalhadores produzindo em casa ou vendendo na rua, prestando serviços para outras empresas. A primeira impressão é de que são autônomos, com liberdade para se relacionarem com quem quiserem. Mas, na prática, atuam como braços informais dessas empresas, empregados fora da folha de pagamento. Com o ônus de assumir os custos e riscos inerentes à atividade. Os auditores fiscais do trabalho têm a função de detectar esse tipo de fraude e corrigi-la.
Vale lembrar que a fiscalização não é apenas uma questão de garantir direitos a quem está vivendo à margem da legislação, mas também aumentar a arrecadação do Estado, uma vez que ela leva ao pagamento de tributos e contribuições sociais e previdenciárias. Em momentos de crise de orçamento, portanto, reduzir o poder arrecadatório é um contrassenso.
A falta de recursos para a fiscalização, soma-se à falta de pessoal. Uma nota técnica enviada, em maio deste ano, pelo Ministério do Trabalho ao Ministério do Planejamento mostra que o país tem um déficit de 1190 auditores fiscais – o Estado prevê a existência de 3600 vagas para essa função, mas há 2400 em atividade hoje, número semelhante à década de 90 quando o número de empresas e fazendas a serem inspecionadas era muito menor. Essa situação tem pesado especialmente no Estado de São Paulo, de acordo com auditores ouvidos pelo blog. Sem funcionários públicos para a função, sem fiscalização.
Na prática, toda essa situação atende a uma demanda de grupos de empresários que defendem que, neste momento de crise econômica, a fiscalização do cumprimento da legislação trabalhista deveria ser "afrouxada". Pode não ter ocorrido uma ordem direta para isso, mas nem seria preciso. Há dinheiro para comprar deputados a fim de proteger os pescoços de Michel Temer e amigos da guilhotina da Lava Jato, mas não há dinheiro e pessoal para cumprir a lei.
Essa (aparente) contradição vem bem a calhar para os defensores do crescimento baseado no esfolamento do trabalhador.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.