O inimigo não é quem pensa diferente de você, mas quem não pensa
Leonardo Sakamoto
11/09/2017 13h38
O inimigo não é quem pensa diferente de você, tem outra ideologia, outra identidade, outra vida. Mas quem não pensa e, a partir desse vazio, ataca a existência de tudo à sua volta que não lhe faz sentido. O seu inimigo não é seu adversário político ou econômico, mas quem repete mantras violentos que lê na internet, ouve em bares ou vê em certas igrejas e não para para pensar qual a origem daquilo e a quem interessa que esse discurso seja assim. É quem promove um nós contra eles cego, que utiliza técnica de desumanização, tornando o outro uma coisa sem sentimentos e, ao fim, pede sua extinção.
Ou, pior: o inimigo é quem terceiriza o pensamento para grupos que manipulam a massa em nome de seus interesses. Massa que, por conta disso, é facilmente conduzida, achando que está em uma cruzada civilizatória. Quando, na verdade, é apenas gado.
Isso transcende categorias como "direita" e "esquerda", vai muito além. A direita e a esquerda democráticas ainda acreditam no diálogo político, por mais que a capacidade da própria democracia representativa em garantir respostas sobre a qualidade de vida esteja em profundo descrédito. Pois a boa política não prega a censura e punição do outro quando este não ameaça nossa existência. Isso quem faz é uma ditadura.
Essa violência significa a negação da política, a negação da arena pública em que problemas e divergências são expostos, debatidos e resolvidos, conciliados ou tolerados. Evitando, dessa forma, que nos devoremos. E não estou falando daquela negação da política que é apenas estratégia de comunicação de campanha de políticos que se dizem não-políticos e vendem um discurso extremamente ideologizado travestido de não-ideológico. Mas sim da negação como destruição.
Enquanto direita e esquerda brigavam entre si nas páginas de redes sociais e em veículos de comunicação, algo amorfo e fétido cresceu assustadoramente, muitas vezes de forma anônima e apócrifa. Isso não foi silencioso, pelo contrário, acabou sendo tão estridente que quem estava acostumado ao diálogo tradicional acabou por interpretar tudo como indecifrável ruído. No final, o "ruído" pode levar Salvadores da Pátria, com "abraço de pai e pulso firme", a gerenciarem a nação.
Há aqueles que se utilizam da justificativa da discussão política para poder extravasar seu desejo por sangue e demonstrar toda sua incapacidade de sentir essa empatia pelo semelhante e sua incompreensão com o mundo. Que se sentem confortáveis ao vomitar suas verdades, tachando de "mentira" ou "mal" tudo o que for contra elas. Ou aqueles que não conseguem ser contestados ou admitirem ignorância sobre algo sem usar a agressividade como saída. Fazem isso sobre temas da vida pública, como política, mas fazem o mesmo em nome de seu time de futebol, de sua religião, de sua cor de pele, de sua origem social, sua orientação sexual, sua identidade de gênero – ou de qualquer outra razão.
Sim, o ódio é um lugar quentinho. Tal como a ignorância. Difícil, portanto, abandoná-los – ainda em tempos frios, como o inverno que começamos a viver
Nesse momento, o adversário político se torna um inimigo. Construir pontes passa a ser visto como coisa de idiota, enquanto executar vinganças vira um ato de coragem. Elegem-se "heróis" e "vilões". E vai-se à guerra, considerada santa, para matar ou morrer.
Sobre tudo isso, pairam grupos bastante conscientes de tudo isso, guiando a massa disforme. Seus líderes pouco se importam com ideologia. Para falar a verdade, venderiam a mãe a um bom preço, se necessário – e alguns até já fizeram isso. São capazes de tudo para chegar ao poder e mantê-lo.
Para que a vida faça sentido a seus seguidores, abraçam uma ideia e simplificam o mundo ao máximo. Quem vai contra essa corrente, é chamado de "isentão". Cada um tem que escolher seu lado. Se você não é hétero é homo. Se defende políticas para os mais pobres, não pode ter um smartphone. Ou apoia a campanha de terra arrasada do governo contra as drogas ou é um usuário de crack que rouba o pai pelo vício. Tudo o que foge da heteronormatividade corrente é abominação e um desrespeito à família. Acha que um partido político representa toda a maldade no mundo ou acredita que da boca de seus líderes fluam rios de leite e mel. E, a partir daí, tentam calar ou assegurar que esses deixem de existir.
A saída para contrapor tudo isso não é mais silêncio, mas outras vozes.
Ampliar o debate público de qualidade ao máximo, nas escolas, na mídia, nos bares, em casa, na rua, em qualquer lugar, pode ajudar a evitar o evitável. Discordar abertamente, de forma democrática e respeitosa, sabendo falar e ouvir é preciso para criar um contexto em que discursos de ódio não encontrem espaço. Preconceitos e intolerância brotam em uma mesa de bar ou em timeline porque são tolerados socialmente. A partir do momento em que uma grande maioria disser "não", o debate se qualifica por mudança de comportamento ou exclusão do grupo.
Se passageiros de um ônibus ou trem não fazem nada diante da violência sexual contra uma passageira, a violência de gênero continua sendo "normal". No debate público, é a mesma coisa.
Isso precisa acontecer com mais intensidade e quantidade. E agora.
Caso contrário, teremos uma longa noite para refletir sobre o que deixamos de fazer.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.