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Quem defende "intervenção militar" não gosta de aulas de História

Leonardo Sakamoto

18/09/2017 19h06

Uma coisa é ter opinião. Outra é gente que acha que a Constituição é papel higiênico e as instituições democráticas (que levamos décadas para tentar construir) são um grande vaso sanitário. E defende que seu ponto de vista seja aplicado à força, através do fuzil e do canhão, em prejuízo à liberdade e à dignidade do restante da população.

Muitos colegas fizeram textos claros e contundentes a respeito das declarações do general Antônio Hamilton Martins Mourão, secretário de economia e finanças do Exército, favoráveis a uma "intervenção militar". Ele afirmou que, caso a Justiça não consiga tirar da política os envolvidos em ilícitos, os militares terão que impor isso. E que há planejamentos nesse sentido.

Pior do que isso apenas a covardia de um presidente que não se manifestou publicamente contra elas. Mas era de se esperar que uma pessoa que se mantém no poder à base da impunidade não fosse capaz de repreender alguém por atacar a democracia.

As Forças Armadas de hoje não são as mesmas do período da última ditadura, da mesma forma que os contextos nacional e internacional são outros. Seus líderes têm, repetidas vezes, confirmado que o comando é e será civil. E o respeito às liberdades individuais e às instituições continuará, sem intervenções ou golpes.

O problema é que esse tipo de declaração alimenta os malucos de plantão, que podem ser bem agressivos. Um pessoal que acha que a República é a titica do cavalo do bandido e vê comunismo na tigela dos cereais do café da manhã. Seres mágicos que parecem se reproduzir de forma assexuada, por brotamento, aos milhares na internet. Pessoas que defendem uma "intervenção militar constitucional" (haha), o bloqueio da conversão do país em uma "ditadura gayzista" (kkkkkkk) e uma ação para evitar a iminente "implantação do comunismo" (#morri).

Pessoas que dizem que o mal precisa ser extirpado e o bem recolocado no lugar. E quem é o mal? Daí reside o problema. Ouvimos cada vez mais que há pessoas ou grupos que representam o mal, cuja natureza é contra os costumes e as tradições dos "homens e mulheres de bem", e precisam ser extirpados.

Na superfície dessa afirmação, há ódio. Mas se escavarmos um pouco, chegaremos ao medo e, em seguida, à ignorância sobre o outro. Pincelado por horas de aulas de História cabuladas para ir empinar pipa ou fazer footing no shopping.

Já escrevi isso antes, mas achei que era importante trazer a discussão aqui novamente. Lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E o impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia a dia das periferias das grandes cidades, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

Diante da atual tentativa de excluir o espírito crítico dos bancos escolares, através de ações reacionárias como o "Escola Sem Partido", desejo que a história daquele período continue a ser contada nas escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.

Se ficarmos apenas assistindo boquiabertos aos retrocessos sociais, ambientais, econômicos, políticos e civis, o que é um pesadelo do passado voltará a ser nosso cotidiano. Liderado por falsos "salvadores da pátria", eleitos no braços de quem está cansado de tudo o que está aí Inclusive da liberdade para procurar soluções de forma coletiva aos problemas da sociedade. Só dessa forma, os poucos milhares que hoje clamam por um golpe militar ou pela volta da ditadura continuarão a ser vistos pelo restante da sociedade como mal informados, ignorantes ou insanos.

E também como já disse aqui, acho importante esse pessoal mostrar sua cara e dizem quem é. Vocês não tinham curiosidade de saber quem eles são? O que comem? Onde vivem? Como se acasalam? Pronto, taí. Temos a responsabilidade de, uma vez identificados, despejarmos todo o carinho e paciência possíveis. Pois, talvez um dia, compreendam o que significa a liberdade que está diante de seus olhos, mas que não conseguem enxergar.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto