Milícias digitais: Sob a desculpa da "defesa da moral", uma luta pelo poder
Leonardo Sakamoto
29/09/2017 20h53
Wagner Schwartz durante apresentação no 35º Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna. Foto: Atraves/Reprodução
Quando uma turba resolve fazer Justiça com as próprias mãos e parte para o linchamento de uma pessoa acusada de cometer um crime, usa – não raro – o discurso de que as instituições públicas não conseguem dar respostas satisfatórias para punir ou prevenir.
Afirmam, dessa forma, que estão resolvendo – como policial, promotor, juiz, júri e carrasco – o que o poder público não foi capaz de fazer, baseado em um entendimento limitado do que é certo e do que é errado. Do que é moral, imoral ou amoral. Do que é aceitável ou inaceitável. Mesmo que, ao final do dia, isso os transforme em criminosos mais vis do alguém que comete um furto, por exemplo – uma vez que a vida vale mais que um produto e não existe pena de morte no Brasil. Em tese, claro.
Portanto, é triste que turbas estejam despontando, aqui e ali, resolvendo fazer "Justiça com as próprias mãos", acusando pessoas ou instituições não de estuprar, roubar ou matar, mas de difundir uma ideia ou se manifestar artisticamente. Adotam a difamação e virulentos ataques virtuais – que, não raro, deixam traumas e sequelas nos moldes das agressões físicas – como modo de ação. Continuando nesse ritmo, passaremos para o linchamento muito em breve.
Não é à toa que esta situação remete a momentos da Inquisição que pensávamos ter deixado para trás.
Durante a Contra-Reforma, lideranças lançavam ao fogo quem questionava sua interpretação das palavras do Deus cristão. No fundo, não era a fé e sua doutrina que estavam defendendo, mas a manutenção de sua hegemonia sobre a população. Pois quem detém a interpretação sobre como deve ser a morte, a vida e, mais importante, a vida após a morte, controla o mundo.
Esse processo se repete ainda hoje com pessoas e movimentos que usam a justificativa da "moralidade" para atacar manifestações artísticas em desacordo com sua visão de mundo. Os mais inocentes acham que estão atuando em nome da vontade de Deus ou em defesa da família. Os mais espertos, que comandam o show ou sabem como dele se apropriar, querem promover sua imagem como "guardiões dos valores" de um determinado naco da população e serem vistos como sua "consciência crítica". Para quê? Ter poder sobre esse naco, aumentar sua capacidade de construir significados e sentidos coletivos. Mas também a fim de ajudar um político-amigo a se eleger ou contribuir com um empresário-amigo em sua empreitada contra os direitos trabalhistas.
No fundo, ninguém se importa em entender o sentido de uma notícia de jornal ou de uma mostra artística. Muito menos se promovia realmente a "pedofilia". Os líderes da turba despejam o significado que desejarem no alvo do ataque, conectando-o a ódios ancestrais e tabus. A turba, a partir daí, segue a lógica do linchamento. Ou seja, não importa o que aconteceu de verdade, se alguém está apanhando da turba é porque é culpado de algo.
Durante o ápice do processo de impeachment de Dilma Rousseff, pessoas foram obrigadas a tirar camisetas vermelhas e bonés de movimentos sociais de esquerda sob o risco de apanharem de turbas enfurecidas na rua. Outras acabaram sendo agredidas. Ações, antes restritas ao ambiente digital, foram ganhando escolas, locais de trabalho e salas de jantar, fomentada por lideranças digitais e pela ausência de uma cultura política do debate, da tolerância e da noção de limites.
À medida em que avançamos em direção ao processo eleitoral de 2018, políticos vêm perdendo o pouco pudor que tinham. Enxergando-se como seres acima do bem e do mal e não aceitando a circulação de qualquer notícia negativa sobre eles, soltam fortes declarações, muitas vezes grávidas de ódio. Estas acabam por dar à luz a campanhas digitais organizadas contra profissionais de imprensa ou formadores de opinião através de um ecossistema de sites anônimos e páginas em redes sociais simpáticos aos políticos em questão.
O direito ao livre exercício de pensamento e à liberdade de expressão são garantidos pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais que o país assinou. Por qualquer grupo, movimento, exposição. Mas a liberdade de expressão não é direito fundamental absoluto, porque não há direitos absolutos. Você não pode usar sua liberdade de expressão, por exemplo, para forçar que outra pessoa não possa efetivar a sua liberdade de expressão.
Ou seja, aproveitando-se de uma interpretação errônea das liberdades individuais, como se elas não tivessem limites ou demandassem responsabilidades, grupos operando como milícias digitais usam as proteções ao direito à livre expressão para subverter a própria democracia, moldá-la ou destruí-la.
O exercício das liberdades pressupõe responsabilidade e limites. Quem não consegue conviver com isso, não deveria nem fazer parte do debate público, recolhendo-se, junto à sua incapacidade de viver em sociedade, ao seu cantinho.
Vale lembrar que, por vezes, não são os organizadores de ações desse tipo que ameaçam, esmurram, esfaqueiam e atiram, mas é a sobreposicão de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna o ato de atacar, esfaquear e atirar banais. Ou, melhor dizendo, "necessários" para tirar o país do caos e levá-lo à ordem. Acabam por alimentar a intolerância, que depois será consumida por seus seguidores malucos que fazem o serviço sujo.
Não podemos esquecer que já linchamos sistematicamente pessoas cujo crime do qual são acusadas é o de criar rupturas em uma suposta harmonia da sociedade ao tentarem ser simplesmente quem são. O receio constante de apanhar ou ser maltratado não é novidade para muitos gays, lésbicas, transexuais, travestis, negros (principalmente jovens), indígenas, mulheres. Ou seja, cidadãos tratados como se fossem de segunda classe.
Seguindo essa toada, quando começaremos a amarrar pessoas em postes para linchamentos ideológicos?
O que a maior parte das hordas que adotam o terror como modelo de atuação não sabem é que não se mata uma ideia calando quem a carrega. Porque uma ideia não pertence a uma única pessoa ou instituição. Ela, parida pela somatória das experiências de vida individuais e pela ação da razão, passa a pertencer à sociedade e ao seu tempo histórico.
Ou seja, uma ideia não morre simplesmente junto com uma pessoa que a defende. Queimada na fogueira ou agredida em praça pública, ela se multiplica. E, com isso, transforma, para melhor, a vida de todos os envolvidos. Mesmo que eles não reconheçam isso.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.