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Como políticos fomentam a intolerância e o moralismo em busca de poder

Leonardo Sakamoto

01/10/2017 10h43

Protesto em frente ao Museu de Arte Moderna (MAM. Uma funcionária do museu foi agredida por manifestantes. Foto: Renato S. Cerqueira/Futura Press/Folhapress

Este post não é sobre polêmicas envolvendo manifestações artísticas, mas sobre como políticos se aproveitam delas.

Através de vídeo divulgado em suas redes sociais, neste sábado (30), o prefeito de São Paulo João Doria (PSDB) criticou tanto a exposição Queemuseum, que estava no Santander Cultural, em Porto Alegre, quanto uma performance envolvendo nu artístico, no Museu de Arte Moderna, em São Paulo. Ambas já haviam sido alvo de ataques de movimentos que atuam como milícias virtuais – alguns deles, parceiros do próprio Doria.

O prefeito afirmou que as manifestações "afrontam o direito, a liberdade e, obviamente, a responsabilidade". E que a performance do MAM é "imprópria" e "libidinosa". E pediu a quem promove a arte que tenha "consciência de que é preciso respeitar àqueles que frequentam os espaços públicos".

O vídeo surfou nas redes sociais mais conservadoras, que estão ativadas pelos grupos que defendem a censura de manifestações artísticas sob justificativa de uma suposta defesa da moral e dos bons costumes. O momento de publicação não foi aleatório, mas construído analisando-se o termômetro da internet sobre o assunto. Mesmo as palavras foram escolhidas para atingir determinado público que já está sensibilizado pela repercussão das mostras. Vale lembrar que a equipe que auxilia Doria, que é um excelente comunicador, nas redes sociais monitora a internet, possibilitando saber como e quando se pronunciar.

Não creio que ele acredite no que está defendendo, Doria é mais cosmopolita que isso. Mas as milícias digitais em cujo discurso ele surfa usam a justificativa da "moralidade" para atacar manifestações artísticas em desacordo com a visão de mundo de uma parte considerável da população, atiçando-a. O povo pensa que está atuando em nome da vontade de Deus, em defesa da família ou contra a exploração de crianças ao criticar uma exposição ou performance, mas, na verdade, é sequestrada por quem entende do jogo.

Como parte da população não se importa em entender o sentido de uma mostra artística, muito menos se ela promove realmente "pedofilia", milícias digitais despejam o significado que desejarem no alvo do ataque, conectando-o a ódios ancestrais e tabus. A turba, a partir daí, segue a lógica de retroalimentação vazia do linchamento. Ou seja: não importa o que aconteceu de verdade, se alguém está apanhando da turba é porque é culpado de algo.

Quem comanda o show ou sabe como dele se apropriar, contudo, organiza essa massa com o objetivo de promover sua imagem como "guardião dos valores" de um determinado naco da população e ser visto como sua "consciência crítica". Dessa forma, consegue aumentar sua capacidade de construir significados e sentidos coletivos. Mais do que isso, consegue trazer esse naco para dentro de sua área de influência e ter poder sobre ele. O que pode ser muito útil na tentativa de conquistar uma candidatura à Presidência da República.

Estamos entrando em um mundo novo, em que discursos e políticas podem ser determinadas pelo número de curtidas, retuitadas, compartilhamentos e comentários positivos em redes sociais. No qual um estrategista de comunicação digital conversa mais com um prefeito do que seus secretários de seu governo. Mas, ao contrário do que se imagina, isso não é necessariamente um avanço no sentido de aumentar formas de democracia direta, mas pode significar um impacto sobre o respeito à pluralidade – uma das marcas da própria democracia.

Esse método de se comunicar com a rede foi utilizado quando a Prefeitura de São Paulo retirou pessoas que sofrem de dependência de drogas da Cracolândia na região da Luz, após ações violentas envolvendo a polícia militar. A justificativa é que a "opinião pública" apoiava. Em outras palavras, que uma parte significativa da internet concordava com a porrada como política de tratamento de dependência de drogas.

Este contexto é diferente daquele em que a política tradicional tinha à disposição apenas pesquisas de opinião realizadas de forma tradicional, que atingem o universo da população sobre um determinado assunto, com metodologia científica e margem de erro conhecidas, capazes de serem auditadas externamente e que demoram mais tempo para serem feitas. As pesquisas tradicionais ainda existem e foram divulgadas posteriormente no caso da Cracolândia. Mas, antes delas, o monitoramento da internet já apontava o caminho. Em tempo real.

Mesmo as pesadas críticas sobre a violência física e social da ação – que vieram de especialistas de saúde pública, da sociedade civil, de outros políticos, de jornalistas e de parte da população – não mudaram a ação do prefeito. Afinal, os formadores de opinião convencionais não são a referência que ele usa para aferir se seu discurso ou política está surtindo efeito. Pelo contrário, não raro bate de frente com eles quando atrapalham a construção de sua narrativa.

Um prefeito não governa apenas para seus seguidores. Nem mesmo para aqueles com os quais divide uma visão de mundo. Nem apenas para a maioria. Pois democracia é um sistema em que são adotadas as decisões da maioria, desde que garantida a dignidade das minorias. Caso contrário, ela não é democracia, mas ditadura da maioria.

Governar com o olho no termômetro das redes sociais é semelhante a programas de TV ao vivo que fazem mudanças de acordo com a audiência do Ibope em tempo real. Pode gerar mais público, mas não significa que terão mais qualidade com isso e, certamente, se preocupará menos com as consequências do que divulga. Tudo é válido para trazer mais gente para sua zona de influência. Inclusive dizer apenas o que parte da população quer ouvir.

O problema de governar olhando para a vontade de uma suposta maioria é que ninguém discute quem escolhe a agenda. Ou seja, por que um vídeo sobre as exposições artísticas? Porque é o tema do momento. E quem ajudou a transformar em tema do momento? Milícia digitais que, por sua vez, são apoiadoras do prefeito. Em outras palavras, movimentos e grupos criam a onda digital em que seu político irá surfar.

E isso porque não estamos tratando aqui de "bots", que atuam na formação da opinião na rede, nem mesmo das caixas de reverberação de opinião, bolhas reforçadas pelo algoritmos de redes sociais, que tendem a te entregar apenas conteúdo de  acordo com o seu perfil. O que pode levar a uma percepção equivocada sobre o mundo.

Mas há elementos pouco conhecidos nesse processo. Políticos bem assessorados na rede não atiçam regularmente a massa de forma generalizada com suas publicações em redes sociais, mas agem junto a diferentes grupos de acordo com a natureza e característica de cada um deles.

O novo modelo tecnológico de publicidade em redes sociais possibilita que se fale especificamente com determinados públicos. Por exemplo, um político pode alcançar, com uma publicação, prioritariamente moradores de bairros de classe média alta paulistana, que ganham mais de 20 salários mínimos, são mais religiosos e contam com formação conservadora. Dessa forma atinge, com sua mensagem, um impacto muito maior que a divulgação ampla e irrestrita. E João Doria tem se beneficiado disso. Não neste caso especificamente, mas na gestão de sua imagem.

Não é o único, nem o primeiro, claro. Donald Trump já havia adotado o método em sua campanha de forma magistral, usando análise psicológica dos usuários da rede. Trump direcionava, por exemplo, determinados modelos de campanha específicos a pessoas com mania de perseguição ou de conspiração.

Uma realidade de publicidade extremamente segmentada é incapaz de ser analisada em sua totalidade. Afinal, é mais difícil para um jornalista conseguir entrar em bolhas que não são as deles. Para falar a verdade, ele nem sabe que publicidade está chegando nesse espaço. "Dark post" é uma postagem que pode ser vista apenas pelo público selecionado por quem comprou um anúncio em redes sociais, seja na página do contratado, seja na timeline do alvo. Pode não aparecer para a maioria dos jornalistas, mas surgirá a quem ele interessar.

E o "dark post" vem sendo muito usado por políticos e empresas em todo o mundo. De certa forma, há a construção de um novo modelo de político sobre o qual não conhecemos a totalidade de seu discurso, porque parte dele está nas sombras. É como se fosse uma lista fechada de WhatsApp dentro de uma página aberta do Facebook. Um dos efeitos disso é a quantidade de comentários sempre simpático ao político em muitas de suas postagens, que podem até ser abertas ao público, mas foram distribuídas em timelines específicas.

E a tendência para as eleições de 2018 é piorar. Com a correta proibição do financiamento privado empresarial, candidaturas devem combinar com empresas interessadas em apoia-las para que arquem com serviços digitais de construção e desconstrução de reputações via internet. Esses serviços tiveram um papel importante nas últimas eleições gerais de 2014 com a transformação da rede em palco de batalha em que a importância dos fatos caiu morta.

Consultorias que atuam na construção de reputações serão contratadas pelas campanhas e pagas com recursos de doadores pessoa jurídica. Por ser feito nas sombras, não ter custos expressivos e nem passar pela campanha e seus representantes, esse financiamento pode ser invisível à análise das contas de campanha pelo poder público. Seria uma espécie de "Caixa 3".

Isso é apenas a ponta do iceberg da manipulação digital pelo qual estamos passamos sem perceber. Para usar as palavras do prefeito citadas no início deste texto, esses processos que ajudam a moldar as preferências das pessoas "afrontam o direito, a liberdade e, obviamente, a responsabilidade".

O ódio não vem apenas do medo e da incompreensão do desconhecido e do diferente. Ao longo da história, o ódio também foi uma construção que serve a fins políticos. Construção tão bem feita que passamos a achar que aquilo plantado dentro de nós por terceiros sem que percebessemos, na verdade, é nosso.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto