Ditadura segue viva em deputado que sugere tortura de artista do MAM
Leonardo Sakamoto
04/10/2017 02h23
Cena de tortura do filme "Corte Seco", com o ator Gabriel Miziara, dirigido por Renato Tapajós. Esse tipo de "nu artístico" era praticado pela última ditadura militar no Brasil, com a anuência de "homens e mulheres de bem"
Em uma democracia plena, um parlamentar que utilizasse os microfones do Congresso Nacional para defender a tortura de uma pessoa seria considerado incapaz de continuar exercendo suas atividades e cassado.
Pois uma coisa é a imunidade da tribuna política. Outra é usar a Constituição Federal como papel higiênico.
Mas, infelizmente, vivemos algo distante de uma democracia. Com louváveis exceções da esquerda à direita, a Câmara dos Deputados ostenta um grande número de seres humanos deploráveis, mais interessados em tirar o seu ou defender o retrocesso do que proteger os elementos que defendem a dignidade humana.
Nesse ambiente, o deputado Laerte Bessa (PR-DF), que era delegado de polícia, sentiu-se à vontade. Sabe que não importa o que diga, nada chocará mais do que a venda de votos de deputados a céu aberto para blindar um presidente denunciado à Suprema Corte por organização criminosa e obstrução de Justiça
Ao comentar o caso da polêmica criada por milícias digitais sobre a performance de um nu artístico no Museu de Arte Moderna, em São Paulo, ele disse sobre o artista, segundo o jornal Folha de S.Paulo: "Pergunta se ele conhece direitos humanos? Direitos humanos é um porrete de pau de guatambu que a gente usou muitos anos em delegacia de polícia. Se ele conhece rabo de tatu [usado para chicotear presos], que também usamos em bons tempos em delegacia de polícia. Se aquele vagabundo fosse fazer aquela exposição (…) ele ia levar uma 'taca' que ele nunca mais ele iria querer ser artista e nunca mais iria tomar banho pelado".
O Brasil tem uma longa história com a tortura como instrumento de punição ou convencimento. Durante as sessões de tortura realizadas no 36o Distrito Policial (local que abrigou a Oban e, posteriormente, o DOI-Codi, na capital paulista), durante a ditadura militar, os vizinhos do bairro residencial do Paraíso reclamavam dos gritos de dor e desespero que brotavam de lá. As reclamações cessavam com rajadas de metralhadora disparadas para o alto, no pátio, deixando claro que aquilo continuaria até que o sistema decidisse parar. Mas o sistema nunca para por conta própria.
A tortura firmava-se como arma da disputa ideológica. Era necessário "quebrar" a pessoa, mentalmente e fisicamente, pelo que ela era, pelo que representava e pelo que defendia. Não era apenas um ser humano que morria a cada pancada. Era também uma visão de mundo. Dizem que os carrascos não podem pensar muito no que fazem sob o risco de enlouquecerem. Mas também dizem que os melhores carrascos são os psicopatas que gostam do que fazem. E se dedicam com afinco a descobrir novas formas de garantir o sofrimento humano. Muitos dos que fizeram o serviço sujo para a ditadura e passaram por aquele prédio amavam sua "profissão".
Enxergavam nos presos políticos uma ausência completa de características humanas. Tal qual alguém não consegue ver humanidade em uma forma de expressão artística com a qual não concorda. E, para o incômodo cessar, o equilíbrio precisa ser reencontrado. Portanto, essa arte e seu responsável precisam ser moídos.
Torturadores não acreditavam simplesmente estar em uma guerra. Se assim fosse, haveria protocolos internacionais proibindo o que foi feito, como a Convenção de Genebra. Muito menos em uma missão divina. Aliás, Deus, se existir, nunca ouviu os gritos que saíram dos poros das vítimas. Para os torturadores as pessoas que estavam dentro das celas eram representações do mal. E o mal precisa ser extirpado.
O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) era integrado por membros do Exército, Marinha, Aeronáutica e policiais. E a metodologia desenvolvida durante esse período, junto à certeza do "tudo pode", continua provocando vítimas em outras delegacias espalhadas pelo país e nas periferias das grandes cidades, onde a vida vale muito pouco. A tortura é ferida não curada e, portanto, segue a toda sendo praticada por agentes do Estado.
Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, foi encontrado enforcado no dia 10 de agosto de 1974, durante seu exílio na França, como consequência da tortura que sofreu pelas mãos dos agentes da ditadura militar brasileira. Em 1969, ele foi um dos dominicanos presos pelo torturador Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), acusados de apoiar as ações da resistência contra o regime. O calvário de Tito, da prisão ao suicídio, tornou-se um dos símbolos da luta contra a ditadura.
Publico, novamente, trechos do testemunho de Tito à Justiça Militar, em 1969, em que conta como foram as sessões de tortura. O depoimento faz parte de ação movida pelo Ministério Público Federal contra os torturadores:
"Na quinta- feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão, cercado por uma equipe, voltou às mesmas perguntas. 'Vai ter que falar, senão, só sai morto daqui', gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça: era quase uma certeza. Sentaram-me na "cadeira de dragão" [com chapas metálicas e fios], descarregaram choques nas mãos e na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse decompor. Da sessão de choques, passaram-me ao pau-de-arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo sangrando e todo ferido, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me à outra sala, dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse 'antes de morrer'. Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatórias. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais: tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais. Restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos."
O impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia a dia das periferias das grandes cidades, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).
Ao se colocar de forma espontânea nesse grupo dos que torturam, o deputado Laerte Bessa mergulha de cabeça na latrina da humanidade.
Discursos como o dele não podem ser esquecidos. Só a constante lembrança do que aconteceu e do que ainda acontece é capaz de garantir que os poucos milhares que hoje clamam por intervenção militar continuem a serem vistos pelo restante da sociedade como mal informados, ignorantes ou insanos – e tratados com todo o carinho possível e paciência. Pois, talvez um dia, compreendam que aquilo que atacam com tanta agressividade é, na verdade, a liberdade que lhes permite ser o que quiserem.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.