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Enquanto povo debatia um homem nu, Câmara passou a mão na bunda do povo

Leonardo Sakamoto

04/10/2017 10h09

Foto: Fernando Bezerra Jr. (EFE)

Enquanto parte da sociedade segue escandalizada com um homem nu, a Câmara dos Deputados aprovou um pornográfico perdão bilionário de dívidas públicas em meio à crise econômica.

Sob a justificativa de que o país precisa voltar a crescer, a população mais vulnerável foi obrigada a engolir uma redução de direitos trazida pela Reforma Trabalhista, viu o congelamento de investimentos em educação e saúde públicas através da PEC do Teto dos Gastos e corre o risco de não conseguir se aposentar se aprovada a Reforma da Previdência.

Não se nega a importância de garantir saídas para as pendências das empresas com o Estado. Mas quem tem poder de barganha com um Michel Temer no cadafalso aproveita o momento político conturbado para salvar o próprio rabo e o de seus patrocinadores.

Mudanças foram aprovadas, nesta terça (3), na medida provisória que criou o programa de refinanciamento de dívidas com a Receita Federal e a Fazenda Nacional. Graças à ação da bancada do fundamentalismo religioso, igrejas e instituições de ensino vocacional conseguiram o perdão de dívidas, mesmo as que já tinham sido refinanciadas – incluindo aí os débitos com a Previdência Social. E ganharam isenção de tributos e contribuições por cinco anos. Alterações também foram feitas no conselho em que se questiona cobranças tributárias – agora votos de desempate serão dados a favor das empresas. No texto final do Refis aprovado pela Câmara, grandes devedores poderão ter desconto de 90% nos juros e 70% nas multas, além de boas condições de parcelamento. A versão aprovada deu desconto maior que o previsto no projeto original.

Como parlamentares inscritos na dívida ativa da União devem R$ 1,5 bilhão ao país e eles tiveram especial interesse nas mudanças da medida provisória original para beneficiá-los, chegou a ser proposta uma emenda moralizadora, que proibiria empresas que tivessem como sócios ou diretores políticos com mandatos, seus cônjuges ou parentes até segundo grau de aderir ao programa de refinanciamento. Porém, ela foi derrubada em plenário sob a justificativa esdrúxula de criminalização da classe política.

As medidas agora vão ser discutidas no Senado, casa do poder econômico por excelência.

Parte do grande empresariado já trabalha com a lógica de sonegar e esperar esses programas periódicos de refinanciamento de dívidas. Para que pagar impostos em dia? A lei é para otários, ou seja, nós. O que o Congresso Nacional reafirma com isso é bem simples: paga imposto em dia quem é empresário burro ou trabalhador.

Até porque a dívida da maior parte dos trabalhadores não é com grandes agências de financiamento público ou com a Receita Federal, mas com o crediário da loja de móveis e eletrodomésticos, a operadora do cartão de crédito e o banco – através do cheque especial ou do empréstimo. Tente propor um Refis nas condições de mãe aprovadas pela Câmara a esse pessoal da iniciativa privada para ver o que acontece com você. Capaz de ser espancado pelo segurança.

O que temos visto nos últimos meses no Brasil é um escárnio completo. O que beneficia o poder econômico e os políticos no Congresso Nacional tem passado com uma facilidade assombrosa. Enquanto isso, o que funciona como proteção social aos trabalhadores tem desabado como se fosse feito de papel. E o pior é que há trabalhador que, bem treinado para ser cão de guarda do capital alheio, ainda comemora a tragédia como se fosse um sinal de que este é um país que vai pra frente.

Se o Congresso fosse a representação do povo brasileiro e não do interesse de si mesmo ou poder econômico, deveria, num momento de crise como este, equilibrar medidas que atingem ricos e pobres para democratizar o chicote. Por exemplo, retornar com a taxação dos dividendos recebidos de empresas por pessoas físicas, mudar a tabela do imposto de renda, isentando os pobres e a maior parte da classe média e cobrando mais dos que mais têm, criando alíquotas de até 40%. Ou ainda aumentar os impostos sobre heranças e taxar grandes fortunas. Isso sem falar do fim da farra dos subsídios, que transformam nosso capitalismo em uma brincadeira de criança.

E você ainda vai reeleger todo esse pessoal no ano que vem. E cair no conto de políticos enganadores e de milícias digitais que fazem você acreditar que o principal problema da nação, aquilo contra o qual vale realmente se engajar, são exposições e performances de arte.

Brasil, comprovando mais uma vez que, no fundo do poço, tem um alçapão.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto