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Temer defender fim de prisão em segunda instância soa como autopreservação

Leonardo Sakamoto

14/10/2017 18h23

Foto: Andre Coelho/Agência O Globo

O governo Michel Temer defendeu, através da Advocacia-Geral da União (AGU), a revisão da possibilidade de prisão de condenados após decisões judiciais de segunda instância. Em outubro do ano passado, a maioria da corte fechou o entendimento que réus podem ser presos mesmo que ainda estejam recorrendo.

É claro que, na época, reclamamos que estava sendo ignorado o princípio constitucional da presunção da inocência, que permite que ninguém cumpra uma sentença por um crime enquanto não houver trânsito em julgado. Ou seja, sem que a Justiça tenha dado uma palavra final sobre ele.

Agora, passado um ano da decisão e com o avanço das condenações relacionadas à operação Lava Jato, que atingem tanto seu núcleo de amigos, quanto seus clientes no Congresso Nacional e até alguns opositores (que, assim, se transformam em aliados de ocasião), Temer quer a regra revista. O plenário do STF deve analisar novamente o tema e a decisão anterior pode ser revista.

"A AGU deveria agir como instituição protetora da Constituição, do Estado brasileiro. Mas tem defendido sucessivos ataques à nossa ordem constitucional, como o pavoroso Teto de Gastos e as propostas de Reforma da Previdência que agravam a situação dos mais pobres. Por isso, essa posição sobre a prisão em segunda instância precisa ser vista com cautela. Não há dúvidas de que é a posição a favor da Constituição, mas parece estar sendo adotada em benefício de alguns ministros – e até do Presidente – acusados em processos criminais", afirma Eloísa Machado, professora da FGV Direito SP e coordenadora do Centro de Pesquisa Supremo em Pauta.

"Soa mais como autopreservação do que como apego às regras constitucionais. Até porque poderia agir de forma muito mais impactante e enfática em favor da grande massa de encarcerados no país, como apoiando medidas de descriminalização das drogas, por exemplo", completa Eloísa.

Um dos argumentos usados em defesa das prisões em segunda instância foi de que pessoas pobres não usam tribunais superiores e, portanto, só os mais ricos seriam atingidos. Contudo, as Defensorias Públicas (que atendem cidadãos que não podem bancar um advogado) atuam sim em tribunais superiores, garantindo habeas corpus para a massa socialmente mais vulnerável que recorre de decisões.

Se o poder público estivesse realmente preocupado em combater a injustiça, há outro problema maior a ser resolvido: a prisão provisória.

No último balanço do próprio governo federal, o país contava com 250 mil presos sem condenação em qualquer instância em 2014. Levantamento, deste ano, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que os presos provisórios representam, ao menos, 34% da população carcerária.

O tempo médio de prisão provisória é alto: de 172 dias em Rondônia a 974 dias em Pernambuco. Do total, 29% dos provisórios são acusados de tráfico de drogas, 7% de furto e 4% de receptação. Homicídios respondem por apenas 13% do total. Quase 40% deles são, posteriormente, absolvidos logo na primeira instância de julgamento. Traduzindo: estamos punindo injustamente inocentes ou colocando pessoas que cometeram delitos mais leves para "estudar" em cadeias superlotadas.

Do ponto de vista estatístico, quem é influente, branco, rico e tem bons advogados tem mais chances de esperar o final de uma investigação ou de um julgamento em liberdade. Mas a maioria dos presos provisórios é anônima, negra, pobre e sem advogados constituídos.

Um levantamento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo apontou que, do total de homens que deram entrada em centros de detenção provisória e responderam ao questionário, 62% tinham até 29 anos, 65% se declararam negros e 81% não tinham advogado. Entre as mulheres, 64,5% se declararam pretas ou pardas, 60,7% até 29 anos e 80% não contava com advogado.

Em maio, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos solicitou ao Supremo Tribunal Federal um habeas corpus coletivo para que todas as gestantes ou mães de crianças de até 12 anos que estejam em situação de prisão provisória possam ser beneficiadas com prisão domiciliar – como prevê a legislação. Os advogados do Cadhu usaram como justificativa a decisão que havia sido concedida em nome de Adriana Ancelmo, esposa do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. O Supremo aceitou a ação e já pediu um levantamento nacional das mulheres nessa condição para tomar uma decisão.

O principal problema do sistema de Justiça no Brasil continua sendo sua seletividade. Pobres, negros e jovens para os principais escolhidos para serem punidos com encarceramento. E, para isso, não há mudança no comportamento do Estado visível no horizonte.

Em tempo: No final de 2015, o STF decidiu que é permitida a invasão de domicílio à noite para a realização de busca e apreensão se a autoridade policial tiver "fundadas razões" para suspeitar da prática de um crime. A Constituição Federal, ela de novo, demanda ordem judicial prévia para a invasão de domicílio. Na prática, isso apenas facilitou a justificativa para arrombar a porta de um barraco. Que continua muito mais fácil do que entrar sem autorização em uma mansão.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto