Topo

Dormir em curral sobre esterco e comer carne podre deixa de ser escravidão

Leonardo Sakamoto

20/10/2017 11h49

Condições degradantes: Água utilizada por trabalhadores resgatados para todas as necessidades – de consumo a preparo de alimentos. Fotos: Carla Gabrieli

Por Vitor Filgueiras, especial para o blog*

A portaria 1129 do Ministério do Trabalho, publicada no último dia 16, busca, fundamentalmente, acabar com o combate ao trabalho análogo ao escravo. Isso porque, se os conceitos de jornada exaustiva e condições degradantes se tornarem insuficientes para a configuração do crime previsto no artigo 149 do Código Penal, a grande maioria dos casos dessa exploração mais extrema do trabalho deixará de ser considerada juridicamente como análoga às condições da escravidão. Mesmo que, de fato, a situação seja semelhante ou pior do que as vividas pelos trabalhadores formalmente escravizados até 1888.

Dados de todos os resgates de trabalhadores em condições análogas às de escravos realizados no Estado da Bahia desde 2003 (quando o artigo 149 do Código Penal adquiriu a redação atual) corroboram os argumentos aqui apresentados. Dos 83 flagrantes mapeados até o final de 2016, 52 casos não contemplavam restrição de ir e vir (62,7%). Desde 2012, apenas dois casos estiveram de algum modo associados a coerção individual, contra 15 resgates que envolveram exclusivamente condições degradantes ou jornadas exaustivas.

A submissão de trabalhadores a situações extremas de exploração não requer, em geral, o exercício de coerção individual direta do empregador com chicote ou outro mecanismo de restrição física do ir e vir. É preciso entender que o mecanismo essencial de coerção do trabalho no Brasil não é o mesmo do século 19. Não por acaso o Código Penal define condição análoga à de escravo – e não trabalho escravo.

Antes da Lei Áurea, os trabalhadores, na condição de escravos, eram obrigados a trabalhar por serem individualmente considerados como propriedade alheia. Hoje, os submetidos a condições análogas à de escravos não têm donos, são livres, tanto para ir e vir, quanto para morrer de fome. Por isso, são obrigados a vender, no mercado, sua capacidade de trabalho aos proprietários dos meios de produção. Esse mercado de trabalho constitui relações brutalmente assimétricas que, dirigidas por empregadores que buscam compulsivamente o lucro, não possuem limites intrínsecos de respeito a parâmetros civilizatórios ou mesmo de integridade física daqueles que trabalham.

Assim, não raro trabalhadores são explorados hoje em condições iguais ou até piores do que antes da abolição da escravidão formal porque não têm alternativa. Eles estão submetidos à coerção impessoal do mercado de trabalho.

Mas, afinal, quais são as condições consideradas análogas às de escravos, sintetizadas pelos conceitos de condições degradantes e jornadas exaustivas, que os auditores fiscais identificam nas inspeções?

Condições degradantes: Barraco no meio do mato em que trabalhadores viviam a serem resgatados pelo governo. Foto: Carla Gabrieli

Fui auditor fiscal do trabalho por mais de dez anos e participei de resgates de trabalhadores em diferentes regiões do país. Atualmente, como professor e pesquisador, tenho lido dezenas de relatórios de inspeção de todas as partes do Brasil.

Os casos enquadrados como condições degradantes envolvem trabalhadores obrigados a dormir sob barracos de lona, em chiqueiros, currais, sobre esterco de animais, consumindo água contaminada por agrotóxicos, alimentos em putrefação, ou mesmo mantidos em condição famélica, dentre outras situações que, em suma, são análogas às vividas na antiga escravidão. Para ilustrar, vejam as fotos neste texto.

Quanto à condição análoga à de escravo por jornada exaustiva, vale citar pesquisa da professora Maria Aparecida da Silva ("Mortes e acidentes nas profundezas do 'mar de cana' e dos laranjais paulistas"), que conclui que a vida útil dos trabalhadores no corte de cana nas décadas de 1990 e 2000 era menor do que a dos escravos do século 19. Segundo a Pastoral do Imigrante, entre 2004 e 2007 teriam ocorrido 21 mortes de cortadores de cana por exaustão durante o serviço.

Condições degradantes: Carne utilizada para alimentação em um dos acampamentos

Em 2014, a fiscalização do trabalho resgatou empregados em um navio de cruzeiro de luxo submetidos a regimes de trabalho que alcançavam 200 dias seguidos, sem nenhum dia de descanso, com jornada diária mínima de 11 horas de trabalho, frequentemente atingindo 16 horas por dia. Numa das mortes de trabalhadores brasileiros em cruzeiros nos últimos anos, o laudo da fiscalização do trabalho concluiu pelo nexo entre o infortúnio e a fadiga da empregada após ter trabalhado sem nenhum dia de folga por 193 dias seguidos, com uma jornada diária superior a 11 horas.

Nenhum dos exemplos citados demandou o uso de correntes, chicotes ou pistolas.

A portaria do governo tem provocado grande repercussão negativa, o que, até certo ponto, surpreende, tendo em vista a diminuta reação que o recente descarte do direito do trabalho tem despertado. Isso talvez se deva ao fato de que estamos tratando da última fronteira à exploração do trabalho. É precisamente essa a disputa: até que ponto explorar trabalhadores não é crime?

Caso a portaria surta efeitos, o trabalho análogo ao escravo continuará existindo, mas não será tratado como tal pelo Estado. Exatamente por isso, tende a crescer. Portanto, esse "fim" do trabalho análogo ao escravo será, na verdade, uma porteira aberta à sua proliferação.

(*) Vitor Filgueiras é auditor fiscal do Ministério do Trabalho, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, com pós-doutorado em Economia pela Universidade Estadual de Campinas.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Dormir em curral sobre esterco e comer carne podre deixa de ser escravidão - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto