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Conheça a "lista suja" do trabalho escravo que o governo não divulgou

Leonardo Sakamoto

22/10/2017 23h39

Libertado da escravidão, em fazenda de gado no Estado do Pará, perdeu o dedo num serviço. Na outra mão, a ação de pesticida na mão pela falta de equipamento de proteção individual. Essa era a água que era tinha que beber (Foto Leonardo Sakamoto)

Uma nova atualização do cadastro de empregadores flagrados por mão de obra análoga à de escravo contém 49 novos nomes. Somando aos que já estavam na relação, totalizam 131 nomes na chamada "lista suja" e um em uma lista de observação.

A divulgação semestral da relação deveria ter ocorrido no final de setembro, segundo as regras antigas do cadastro. Mas em meio a polêmicas mudanças realizadas pelo Ministério do Trabalho nas regras para o resgate de trabalhadores escravizados através de uma portaria, o governo federal não publicizou oficialmente a lista. Contudo, neste domingo (22), o cadastro foi obtido com exclusividade pelo Fantástico, da Rede Globo, e disponibilizado em seu site para download.

Caso sejam seguidas as novas regras de divulgação  da "lista suja", trazidas pela portaria 1.129/2017, a maioria dos nomes desses empregadores nunca virá à público formalmente. Pois elas diferem das regras exigidas até 16 de outubro, data de publicação da portaria. E se uma lista vier, ela deve ser liberada pelo governo apenas no final de novembro, pois é o que afirma a portaria nova, e não no final de setembro, como previsto.

Entre os novos nomes na lista divulgada, estão dois gigantes da agroindústria, a JBS Aves e a Sucocítrico Cutrale – devido a ações que resultaram em resgates de trabalhadores em Santa Catarina e Minas Gerais, respectivamente.

A "lista suja" é uma base de dados mantida pelo Ministério do Trabalho, desde novembro de 2003, que publiciza os casos em que o poder público caracterizou esse tipo de exploração através de resgates de pessoas e nos quais os empregadores tiveram direito à defesa administrativa em primeira e segunda instâncias. Os empregadores envolvidos permanecem por dois anos na relação, a menos que façam um acordo com o governo. Nesse caso, seguem para uma lista de observação e podem sair após um ano, desde que cumpridos os compromissos assumidos.

Baixe a lista divulgada, clicando aqui.

O coordenador nacional de fiscalização do trabalho escravo do Ministério do Trabalho, André Roston, foi exonerado em decisão publicada no Diário Oficial da União em 10 de outubro. Sua cabeça teria sido pedida pela base de apoio do governo no Congresso Nacional em meio às negociações para que não seja admitida a segunda denúncia enviada pela Procuradoria-Geral da República contra Michel Temer.

No dia 17 de outubro, o Painel, da Folha de S.Paulo trouxe a informação de que três dias antes de ser dispensado, Roston havia deixado pronta essa atualização da "lista suja". Mas ela não foi divulgada a público por Ronaldo Nogueira, hoje ministro do Trabalho licenciado. Ele foi temporariamente exonerado para voltar à Câmara dos Deputados e votar a favor de Temer.

Nogueira, no dia 16 de outubro, atendeu a uma antiga demanda da bancada ruralista no Congresso e publicou uma portaria ministerial com uma série de mudanças reduzindo a efetividade do combate à escravidão contemporânea. A medida condiciona a inclusão de nomes à "lista suja" do trabalho escravo a uma determinação do próprio ministro. Ou seja, a divulgação depende de sua autorização e, com isso, pode deixar de ter um caráter técnico e passar a ser uma decisão política.

Também traz novas regras afirmando que, para poder levar um empregador à lista, os autos de infração relacionados a um flagrante de trabalho escravo passam a depender da presença de um boletim de ocorrência lavrado por uma autoridade policial que tenha participado da fiscalização. Dessa forma, a palavra final sobre a existência de trabalho escravo pode sair das mãos de auditores fiscais, especialistas no tema, e passar para a dos policiais.

Por esse novo critério e por outras novas exigências, a portaria impediria a divulgação dessa atualização da "lista suja", uma vez que a maioria dos processos administrativos que levaram à inclusão desses empregadores pelos técnicos do Ministério do Trabalho não estão acompanhados desses novos requisitos. Pois isso não era exigido pelas regras vigentes até o dia 16 de outubro.

Ou seja, a portaria colocou uma trava à divulgação dos nomes dos empregadores – que seriam beneficiados porque os casos em que foram flagrados não ganhariam publicização na "lista suja". A sociedade apenas soube desses empregadores graças à divulgação do Fantástico.

Apesar do governo não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, a lista tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. O que tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.

Em meio ao plantão do recesso de final de ano de 2014, o Supremo Tribunal Federal garantiu uma liminar à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) suspendendo a "lista suja". A entidade questionou a constitucionalidade do cadastro de empregadores, afirmando, entre outros argumentos, que a inclusão na lista suja era realizada sem o direito de defesa dos autuados.

A suspensão foi derrubada em maio de 2016 pela ministra Cármen Lúcia após o Ministério do Trabalho publicar novas regras de entrada e saída. Porém, o governo Michel Temer manteve a publicação da relação congelada até que perdeu uma batalha judicial para o Ministério Público do Trabalho. Com isso, a "lista suja" voltou a ser divulgada em março deste ano.

Em nota divulgada à imprensa, a JBS Aves afirmou que "desconhece sua inclusão na lista de empregadores que tenham submetido trabalhadores à condições análogas à escravidão, não tendo sido notificada até o presente momento pelo Ministério do Trabalho sobre qualquer decisão nesse sentido. A Companhia e todas as suas marcas não compactuam com esse tipo de prática e possuem rígidos controles na contratação de prestadores de serviços e fornecedores".

A nota também afirma que "a empresa também reafirma seu compromisso com o fortalecimento das ações contra o trabalho escravo no Brasil e reforça que é signatária, desde 2007, do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e foi a primeira indústria de alimentos a se tornar membro do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto) desde 2014".

Assim que obtiver o posicionamento da Cutrale, o blog irá publica-lo aqui.

Redução no conceito – Além disso, a portaria reduz o conceito de trabalho escravo contemporâneo, o que dificulta a libertação de trabalhador. Sob a justificativa de regulamentar a concessão de seguro-desemprego aos resgatados do trabalho escravo, benefício que lhes é garantido desde 2003, ela impõe uma nova interpretação para os elementos que caracterizam a escravidão e que, portanto, norteiam a ação das operações de fiscalização foi emitida.

Hoje, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

A nova portaria estabelece o cerceamento de liberdade como condicionante para a caracterização de "condições degradantes" e de "jornada exaustiva", ao contrário do que está no artigo 149 do Código Penal. Segundo essa lei, qualquer um dos quatro elementos separadamente é suficiente para caracterizar a exploração. Dessa forma, as condições de trabalho a que estão submetidas as vítimas, por piores que sejam, passam a ser acessórias para determinar o que é trabalho análogo ao de escravo pelos auditores fiscais.

O Ministério do Trabalho, em nota oficial, afirmou que a portaria "aprimora e dá segurança jurídica" à atuação do Estado brasileiro. Segundo a instituição, "o combate ao trabalho escravo é uma política pública permanente de Estado e que vem recebendo todo o apoio administrativo desta pasta, com resultados positivos concretos relativamente ao número de resgatados, e na inibição de práticas delituosas dessa natureza, que ofendem os mais básicos princípios da dignidade da pessoa humana". Também diz que a "lista suja" é um "valioso instrumento de coerção estatal", afirmando que ela "deve coexistir com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório".

A portaria foi elogiada pela bancada ruralista, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o ministro da Agricultura e Pecuária, Blairo Maggi, o prefeito João Doria, entre outros. E foi criticada pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pelo Ministério Público do Trabalho, por agências das Nações Unidas, entre elas a Organização Internacional do Trabalho, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por associações de magistrados, procuradores, defensores públicos, auditores, sindicatos e organizações da sociedade civil, entre outros.

Post atualizado às 15h do dia 23/10/2017 para inclusão de posicionamento de empresa.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto