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Ministra cita escravidão para defender remuneração de R$ 61 mil do governo

Leonardo Sakamoto

02/11/2017 13h38

Oficina, que produzia para grande marca do varejo, onde trabalhadores migrantes  foram resgatados pelo governo (Bianca Pyl/Repórter Brasil)

A ministra dos Direitos Humanos Luislinda Valois apresentou um pedido para acumular seu salário atual à sua pensão de desembargadora aposentada, o que daria R$ 61,4 mil brutos. Isso ultrapassa o teto constitucional de remuneração do serviço público, que é de R$ 33,7 mil. Para justificar, afirmou que "trabalho executado sem a correspondente contrapartida, a que se denomina remuneração, sem sombra de dúvidas, se assemelha ao trabalho escravo" e citou a Lei Áurea. A informação foi divulgada por Naira Trindade, no jornal O Estado de S.Paulo.

Por conta da repercussão negativa, o ministério afirmou, na tarde desta quinta (02), que encaminhou ao governo a desistência da demanda da ministra. Antes, em entrevista, ela afirmou que não se arrepende da comparação com trabalho escravo: "Todo mundo sabe que quem trabalha sem receber é escravo".

O pedido repercutiu mal entre as entidades que atuam no combate a formas contemporâneas de escravidão. O frei Xavier Plassat, coordenador da campanha de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, afirmou que a comparação é absurda. "Há um contraste entre a imensidão de benefícios que ela já recebe, além de um alto salário, e a situação de um trabalhador que não tem nem o básico para sobreviver, sem salário mínimo e muitas vezes sem comida e água."

Ironicamente, sob a pasta de Luislinda Valois fica a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), criada em 2003, que tem por objetivo organizar, articular e monitorar o cumprimento da política nacional de combate a esse crime. A comissão é formada por representantes de órgão estatais, entidades da sociedade civil, associações empresariais e conta com organismos internacionais como observadores.

"A declaração da ministra não surpreende. Apenas revela seu descompromisso com os direitos humanos e com a política de combate ao trabalho escravo", afirma Tiago Cavalcanti, procurador do trabalho e coordenador nacional da área responsável pela repressão à escravidão do Ministério Público do Trabalho. "A ministra é peça-chave no atual governo: sob sua gestão tudo está em permanente retrocesso e até a Conatrae, comissão instituída há quase quinze anos para acompanhar o cumprimento do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, ameaça fechar as portas." Este blog tentou contato com a ministra, mas não conseguiu até o momento.

A Conatrae era presidida, até esta terça (31), por Flávia Piovesan, então responsável pela Secretaria Nacional de Cidadania, que deixou o governo para assumir uma das cadeiras da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Ela, que era subordinada à ministra Luislinda, foi uma das vozes mais críticas à polêmica portaria publicada pelo governo Temer, no dia 16 de outubro, que alterava as regras para fiscalização do trabalho escravo – dificultando a libertação de pessoas e reduzindo a transparência das ações públicas.

A medida atendeu a uma antiga demanda da bancada ruralista, base de apoio do governo. Os efeitos da portaria foram suspensos por decisão liminar proferida pela ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, que tipifica esse crime, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida). A portaria, na prática, anulou os dois últimos elementos.

O pedido de Luislinda Valois vem na esteira de outros casos de autoridades públicas que, recentemente, banalizaram o conceito de trabalho escravo.

No dia 19 de outubro, o ministro Gilmar Mendes, ironizou o combate ao trabalho escravo, ao comentar sobre a polêmica portaria. Afirmou que ele próprio se submete a um "trabalho exaustivo", "mas com prazer".

"Eu, por exemplo, acho que me submeto a um trabalho exaustivo, mas com prazer. Eu não acho que faço trabalho escravo. Eu já brinquei até no plenário do Supremo que, dependendo do critério e do fiscal, talvez ali na garagem do Supremo ou na garagem do TSE, alguém pudesse identificar, 'Ah, condição de trabalho escravo!"', disse Gilmar Mendes segundo o jornal O Estado de S.Paulo. Gilmar voltaria a se pronunciar sobre o assunto nas redes sociais, dando a entender que beliches fora do padrão caracterizariam o crime para os fiscais.

Da mesma forma, Michel Temer divulgou quatro autos de infração de irregularidades banais afirmando que isso havia levado aos auditores fiscais a considerarem um caso como "condições degradantes", um dos elementos que caracterizam trabalho escravo segundo o artigo 149 do Código Penal.

"O ministro do Trabalho me trouxe aqui alguns autos de infração que me impressionaram. Um deles, por exemplo, diz que se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo", afirmou em entrevista ao jornalista Fernando Rodrigues, publicada no dia 20, no portal Poder 360. Ele também mostrou autos relacionados a extintor mal sinalizado e beliche sem escada nem proteção lateral.

Contudo, Temer escondeu que foram emitidos outros 40 autos de infração na mesma fiscalização, incluindo aqueles que tratam de problemas graves como o não pagamento de salários, alojamentos superlotados e condições inadequadas de higiene. Ou que a fiscalização foi confirmada pela Justiça do Trabalho, que condenou o empregador.

Post atualizado, às 15h do dia 02/11/2017, para inclusão de informação sobre a desistência da ministra.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto