Com a benção de Temer, Congresso Nacional está nos devolvendo ao século 19
Leonardo Sakamoto
09/11/2017 19h41
Logo após os atuais deputados federais e senadores assumirem seus cargos, publiquei uma lista de dez coisas que essa legislatura – que já despontava como um vetor de retrocessos sociais históricos – poderia fazer em quatro anos para nos devolver ao Brasil Império. A relação era propositadamente exagerada. Pelo menos, foi o que pensei:
1) Liberação da terceirização para qualquer atividade da empresa
2) Transferência do poder de demarcação de Terras Indígenas para deputados e senadores
3) Redução da maioridade penal para 16 anos
4) Proibição de adoções por casais do mesmo sexo
5) Alteração do conceito de trabalho escravo contemporâneo para diminuir as possibilidades de punição
6) Redução da idade mínima para poder trabalhar para menos de 14 anos
7) Proibição do aborto nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e má formação fetal
8) Aprovação da pena de morte
9) Fim do voto feminino
10) Revogação da Lei Áurea
O problema é que a realidade é muito, mas muito pior, que a ficção. E boa parte das propostas está em andamento.
Vejamos a atualização da situação delas:
1) Liberação da terceirização para qualquer atividade da empresa: Aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada por Michel Temer. Para uns crescimento, possibilidades e dinheiro no bolso. Para outros, precarização, instabilidade e redução de direitos.
2) Transferência do poder de demarcação de Terras Indígenas para deputados e senadores: Em andamento. Deputados tentam aprovar mudança constitucional que transferirá do Poder Executivo para o Congresso Nacional a responsabilidade pela demarcação de territórios indígenas (PEC 215/2000), dificultando a devolução de terras a esses povos. Enquanto isso, segue o massacre de indígenas em Estados como o Mato Grosso do Sul.
3) Redução da maioridade penal para 16 anos: Em andamento. O Senado Federal está analisando Propostas de Emenda à Constituição, como a PEC 74/2011, que tratam do assunto. Um dos projetos aprovados pela Câmara dos Deputados ficou famoso: após sofrer uma derrota em um projeto com esse objetivo, o então presidente Eduardo Cunha (hoje, preso pela Lava Jato) manobrou para que fosse votado novamente no dia seguinte, obtendo vitória.
4) Proibição de adoções por casais do mesmo sexo: Em andamento. Esse pode ser um dos desdobramento do Estatuto da Família (que restringe esse núcleo social à união entre um homem e uma mulher), que está tramitando na Câmara dos Deputados. O PL 6583/2013 é extremamente ofensivo a famílias formadas por qualquer modelo além de um homem e uma mulher.
5) Alteração do conceito de trabalho escravo contemporâneo para diminuir as possibilidades de punição. Em andamento. Há diversas propostas tramitando na Câmara e no Senado para reduzir o conceito apenas à privação de liberdade. Ou seja, tratar a pessoa como um instrumento descartável de trabalho, submetendo-a a condições abaixo de patamares mínimos de dignidade, deixaria de ser considerado pela fiscalização como escravidão contemporânea. Atendendo a essa antiga demanda da bancada ruralista, o governo Michel Temer publicou uma portaria com o mesmo efeito, dificultando a libertação de trabalhadores. A portaria foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal.
6) Redução da idade mínima para poder trabalhar para menos de 14 anos: Em andamento. Pelo menos três propostas de emenda à Constituição para reduzir a idade mínima para a contratação de adolescentes tramitam no Congresso Nacional. Já que não podemos garantir qualidade de vida a eles, que trabalhem.
7) Proibição do aborto nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e má formação fetal: Em andamento. Uma comissão especial da Câmara dos Deputados votou, nesta quarta (8), uma mudança na legislação que dificultará o aborto legal. Foi aprovado que a vida começa na concepção, o que pode restringir o direito à interrupção da gravidez, previsto em lei, para casos de estupro e risco de vida para a mãe, e por decisão do Supremo, para casos de anencefalia. A alteração, proposta pela bancada do fundamentalismo religioso, terá que ser aprovada no plenário das duas casas para passar a valer.
8) Aprovação da pena de morte: Na teoria, impossível, mas na prática… É uma questão de tecnicalidade, a bem da verdade. Porque a pena de morte já é adotada no Brasil para quem é pobre, negro e jovem. Como mudar esse item na Constituição Federal é muito difícil, a não ser em época de guerra com outros países, então tiveram que ser inventivos. O Congresso aprovou e Temer sancionou a lei 13.491/2017 que transfere à Justiça Militar o julgamento de crimes cometidos por militares das Forças Armadas em missões, como a que está ocorrendo no Rio de Janeiro. Ou seja, pelo texto aprovado, se um militar matar um civil durante uma operação em uma comunidade será julgado pela Justiça Militar e não mais pelo Tribunal do Júri, como todos nós. Tem rabo e focinho de impunidade. Isso sem contar que, com aprovação de mudanças no Estatuto do Desarmamento, que estão sendo defendidas por nobres parlamentares da Bancada da Bala, somada à crescente sanha de linchamentos, a pena capital fica praticamente permitida.
9) Fim do voto feminino: Impossível, mas a política segue um clube de homens… As mulheres são minoria no Congresso Nacional, nas Assembleias e Câmaras de Vereadores, sem falar de cargos executivos e no Poder Judiciário. Poucos partidos possuem políticas claras para garantir a quantidade de candidatas previsto em lei e possibilitar a elas a mesma competitividade que a dos homens. E, por isso, têm sido punidos pela Justiça Eleitoral.
10) Revogação da Lei Áurea. Era piada, mas com as propostas de reformas na legislação trabalhista… O Brasil teria que ir contra uma quantidade tão grande de tratados e convenções internacionais que, certamente, seria expulso das Nações Unidas e não conseguiria exportar nem sacolé. Mas considerando que nunca conseguimos inserir socialmente a população libertada no final do século 19 e seus descendentes continuam a ser tratados como carne de segunda, a sofrer todo o tipo de preconceitos e a receber bem menos que os brancos pela mesma função, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, então questiona-se que tipo de abolição foi essa. Além da tentativa já citada do governo para dificultar a libertação de trabalhadores em situação de escravidão contemporânea, o projeto de lei de reforma da legislação trabalhista rural contava com pontos polêmicos, como a possibilidade de "remuneração de qualquer espécie". Ou seja, casa, comida e fumo. Diante do repúdio público, os defensores do projeto disseram que ele foi mal interpretado e colocaram-no na geladeira.
Temer vem aplicando um pacote de medidas, atendendo demandas de parte das grandes empresas e do mercado financeiro, que ajudam a sustentar seu governo. Eles estão felizes. Afinal, tem sido cumprido o objetivo de dar um empurrão na economia, jogando a fatura nas costas dos mais vulneráveis (Reforma Trabalhista, Lei da Terceirização Ampla, PEC do Teto dos Gastos e, quiçá, uma Reforma da Previdência 2.0). Evita-se, assim, atingir os mais ricos, taxando os dividendos recebidos de empresas e criando alíquotas maiores do Imposto de Renda para quem ganha muito.
Satisfeitos também estão os velhos políticos. Que veem na manutenção de Temer uma forma de proteção à guilhotina da Lava Jato, e, principalmente, uma possibilidade de mais pilhagem sobre o tesouro público, de perdões bilionários de suas dívidas e de seus patrocinadores e de um atalho para mudanças legislativas e medidas executivas – que não apenas rasgam a Constituição Federal de 1988, mas também nos devolvem ao Brasil Império.
Já que vivemos em um regime político que se assemelha à democracia, em uma forma de governo que se assemelha à República, por que não acabar com a fantasia e assumir o que nós somos de verdade? Um grande latifúndio, governado por senhores de engenho religiosamente hipócritas, com suas regras, punições e sacanagens.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.