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Por que 300 mortos em atentados na África não provocam indignação por aqui?

Leonardo Sakamoto

25/11/2017 12h16

Atentado terrorista em mesquita no Egito deixou mais de 300 mortos. Foto: Agência EFE

Uma ataque a uma pequena mesquita deixou mais de 300 mortos, entre eles 27 crianças, na região da península do Sinai, no Egito. Após o fim das orações do meio dia desta sexta (24), veio uma explosão e depois um massacre cometido por dezenas de pessoas armadas que chegaram em jipes. A mesquita Al-Rawdah pertence a um ramo do islamismo repudiado pelo Estado Islâmico e outras organizações terroristas.

No dia 14 de outubro, um atentado duplo em Mogadício, capital da Somália, matou mais de 350 pessoas e deixou outras centenas de feridos. Um caminhão-bomba foi usado em uma rua movimentada da cidade, espalhando o horror. O governo responsabilizou o grupo Al Shabbab, ligado à rede terrorista Al Qaeda.

É provável que você não tenha ficado sabendo das duas atrocidades. Ou que elas não tenham chamado sua devida atenção. Mas por quê?

Tragédias não são medidas pela quantidade de corpos amontoados, mas pelo que elas significam para cada um. Tenho uma certa dificuldade em absorver comentários de pessoas que reclamam que determinado massacre ganhou destaque quando outro, bem maior, permaneceu desconhecido. Até porque essa mesma pessoa provavelmente ignorou uma série de outras tragédias e, evitando buscar informações, responsabiliza apenas a imprensa. Que tem suas culpas, claro, mas não está sozinha.

Como já comentei aqui, mantive, durante anos, na sala do meu escritório uma capa da revista Time retratando centenas de corpos espalhados no chão de Ruanda, vítimas do genocídio perpetrado pela maioria hutu contra a minoria tutsi em 1994. Nela, pessoas procuram por parentes e aves procuram por almoço. O título era algo como "Este é o início dos últimos dias, o apocalipse" – talvez uma tentativa de chamar a atenção dos Estados Unidos e Europa para o massacre através de um elemento simbólico que está no alicerce de sua fundação: o relato do julgamento final no Novo Testamento.

Mas não era o começo do fim, apenas mais um expurgo – tanto que, após os 800 mil mortos em Ruanda, a raça humana ainda teve tempo de matar mais 400 mil no Sudão.

Essa capa era um lembrete para me empurrar para fora da zona de conforto. E também uma verdade incômoda. Em 1998, quando estava cobrindo a guerra pela independência de Timor Leste, onde o exército indonésio matou – de bala ou de fome – mais de 30% da população da ilha, um vendedor me disse, ao saber de onde eu era, que ficava feliz pelo Brasil, visto como um grande irmão lusófono, apoiar a luta. Não tive coragem de dizer a ele que o meu país nem sabia de sua existência e que se aqueles mauberes pardos vivessem ou morressem, praticamente nenhuma ruga de preocupação seria produzida. Duvido que entre vocês, leitores, muitos tenham ouvido falar do Massacre do Cemitério de Santa Cruz, em Dili, capital de Timor. Imagine quantos massacres mais, mundo afora, acontecem invisíveis.

Por que relatamos tão pouco mortes nesses locais? A discussão faz parte de alguns debates acalorados em jornalismo. Isso é de interesse público? Do nosso público? As pessoas se interessam em saber sobre isso? Como as pessoas vão se interessar sobre isso se não as informamos com a devida importância? É possível ter opinião formada (não preconceito de internet) sobre aquilo do qual nunca se ouviu falar?

Some-se a isso alguns elementos. Na teoria, a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos temos direito à dignidade por termos nascido humanos. Na prática, a vida de não brancos vale menos que a vida de brancos. E a vida de ricos vale mais que a vida de pobres. E as das mulheres menos que as dos homens. Simples assim. Se a vida for, então, de algum adepto de um religião que cause estranhamento ou atice o preconceito, pior ainda.

Outro elemento sempre ouvido é a justificativa cultural. Ou seja, de que mortes em Nova Iorque, Roma, Paris, Barcelona e Londres causam mais impacto porque estão mais "próximas" de nós. Elas aconteceriam no mesmo "caldo" em que estamos inseridos, com o qual temos uma histórica troca e convivência mútua e através do qual construímos nossa sociedade. Lugares que visitamos nas férias. Sabemos quem são e como vivem e trabalham os moradores das cidades da América do Norte ou da Europa Ocidental. E, a partir desse conhecimento, geramos empatia: nos projetamos no outro, entendemos a sua dor e conseguimos até senti-la.

Sim, mas se dividimos elementos simbólicos com a "metrópole" também temos elos com as outras "colônias", que passaram por processos históricos semelhantes aos nossos e, como nós, têm que pagar, até hoje, seus tributos. Seus problemas econômicos e sociais são semelhantes e, não raro, suas dores também. Infelizmente, damos as costas ao Sul e nos projetamos apenas ao Norte, sonhando, talvez um dia, em sermos reconhecidos como parte da mesma civilização norte-atlântica da qual, de fato, não fazemos parte.

Não é inato um jovem brasileiro se interessar mais por Miami do que por La Paz. Ele aprende isso. Da mesma forma que aprende que a África, boa parte da América Latina e a Ásia são locais em que a vida não vale muita coisa, em que selvagens se matam desde sempre, como se as marcas da colonização e os processos políticos e econômicos globais, somados à ignomínia dos seus líderes locais, não valessem de nada. Se eles tivessem oportunidade de conhecer o outro, as coisas seriam diferentes.

Temos afinidade com aquilo que nos é mais próximo ou que desperta determinados sentimentos. Entendo que a libertação de 150 escravos que sangram na Amazônia para produzir boi que muitos nem sabem como vira bife choca menos que o resgate de um jovem sequestrado em um bairro de classe alta em nossas cidades.

Mas todos sabem o que é uma criança. É duro, portanto, imaginar que não desperte sentimentos. Talvez isso ocorra por banalização dessa violência. Talvez por um ato de fuga consciente ou inconsciente diante da crença na incapacidade de fazer qualquer coisa para resolver o problema – mesmo que a indignação com a história de vida daquela criança africana, asiática ou sul-americana possa te levar a ajudar na melhoria da qualidade de vida das crianças que estão ao seu lado.

Talvez a resposta resida no fato de que uma criança nua, exausta e com olhar perdido numa cama na beira de estrada depois de uma hora de sexo forçado ou coberta de sangue após um dia de confronto armado ou explodida em mil pedaços após um ataque suicida não é uma coisa fofa de se ver.

Em setembro de 2015, a imagem de um menino encontrado morto, de bruços e camiseta vermelha, em uma praia, após uma tentativa frustrada de seus pais de fugirem da guerra na Síria, chocou o mundo.

Ele tinha na época a mesma idade do filho da repórter Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. A foto a fez refletir sobre que leva uma família a colocar seus filhos em um bote precário e lotado, com o objetivo de atravessar o Mar Mediterrâneo. Que tipo de horrores se vive a ponto dessa decisão ser tomada?

Isso a empurrou para anos de apuração no Oriente Médio que resultaram no livro "Lua de Mel em Kobane", que será lançado no dia 11 de dezembro, às 19h, na Livraria da Vila, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Nele, através da história de amor de um jovem casal, sitiado em uma cidade em meio à guerra, ela conta as histórias e as dinâmicas do próprio conflito. Gerando empatia – coisa que nos é tão escassa, mas tão importante.

A discussão sobre a conexão com outras pessoas diz respeito ao exterior, mas também às periferias de nossas cidades. Em São Paulo, no Rio e em tantas outras, há uma matança de jovens, negros e pobres – segundo as estatísticas do poder público. Mas desde que seu sangue não respingue nos outros, tudo bem.

Portanto, busquem informação na internet ou em livrarias para além de sua zona de conforto. Não fiquem esperando que a mídia sirva você de bandeja. Ao mesmo tempo, exijam de nós, jornalistas, que tenhamos coragem de oferecer informação que as pessoas não queiram ler a despeito da audiência, da circulação e de outras formas de medir o "interesse público". Ou seja, que divulguemos o que vocês não desejam ver.

É impossível comparar tragédias pelo número de mortes, uma vez que uma única morte pode compor uma tragédia. E a indignação por algo não exclui a indignação por outra coisa. Mas jogar para baixo do tapete as realidades que também dizem respeito a todos nós, não fazem elas desaparecerem. Pelo contrário, mais cedo ou mais tarde, elas reaparecem. E cobram o preço de nossa inação.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto