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O Brasil ataca professor, compra voto de deputado e faz selfie com bandido

Leonardo Sakamoto

08/12/2017 04h46

Manifestante ferido durante protesto em Brasília. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Quando alguém perguntar qual o legado deixado por este momento tumultuado pelo qual passa o Brasil, poderemos responder que não foi a moralização da coisa pública. Mas, sim, a criação de um Estado autoritário, inimigo da liberdade de pensamento.

Parte significativa do país acreditou que o (necessário) combate à corrupção iria fortalecer nossas instituições, levando-nos a um patamar mais alto de civilização. Claro que houve inegáveis avanços, contudo, paralelamente, práticas totalitárias, que adotam o abuso de autoridade e a arbitrariedade como modus operandi, ganharam corpo. Ao mesmo tempo, tivemos um esgarçamento institucional, transformando a política em um grande "salve-se quem puder". Isso sem contar o empoderamento de um exército de malucos violentos, incapazes de viver em sociedade, que contam com uma visão distorcida de Justiça.

A desnecessária condução coercitiva dos professores da Universidade Federal de Minas Gerais, nesta quarta (6), em meio a uma investigação conduzida pela Polícia Federal, é triste e representativa disso. E, apesar de deplorável, não é o capítulo mais trágico do tratamento policialesco contra o ensino superior público. Esse título, certamente, fica com o suicídio do ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, em outubro deste ano, após ter sido preso em meio a outra investigação. Ele reclamou que havia sido humilhado e condenado antes de poder se defender.

A crítica não visa a impedir que a polícia e o sistema de Justiça cumpram o seu dever. Mas que isso seja feito baseado em sólidos indícios obtidos através de investigação prévia, respeitando-se os direitos individuais dos envolvidos e evitando a todo o custo o espetáculo e a pirotecnia. Caso contrário, a situação terá cara, orelha e focinho de ataque de cunho ideológico e perseguição.

Quando o impeachment foi aprovado, um dos receios era o esgarçamento institucional que a retirada de uma presidente eleita pelo voto popular por um motivo frágil (emissão de decretos de créditos suplementar e pedaladas fiscais) em vez de um caminho mais sólido (cassação da chapa por caixa 2) poderia causar. Infelizmente, o esgarçamento aconteceu. Vivemos um momento em que o desrespeito a regras e normas por parte daqueles que deveriam protegê-las e guardá-las é comum.

Nesse contexto, Michel Temer não conseguiu garantir legitimidade ao cargo, tanto pela forma como chegou lá quanto como, a partir dali, conduziu o governo. Pelo contrário, por conta de sua arbitrariedade, a população passou a confiar ainda menos em suas instituições.

A cúpula do PMDB que está à frente do governo federal não tem pudores de distribuir emendas e cargos, garantir perdões bilionários de dívidas de produtores rurais e empresários urbanos, mudar regras e criar leis a fim de atender aos grupos político e econômico cujo apoio é essencial para manté-la no poder. Isso em um momento em que o país está em uma situação econômica deplorável, com um aumento no número de pessoas que passam fome ou vivem nas ruas. A relação entre o Congresso Nacional e a Presidência da República se transformou em mercado a céu aberto.

E quem paga a conta é a parcela mais pobre da sociedade, alvo das mudanças legais. Trabalhadores já estão sendo demitidos de seus empregos antigos e contratados em vagas precárias após a aprovação da Reforma da Trabalhista e da Lei da Terceirização Ampla. A qualidade dos serviços públicos já está em queda por conta da PEC do Teto dos Gastos, que limita por 20 anos novos investimentos. Enquanto isso, os mais ricos são poupados de taxação dos dividendos recebidos de suas grandes empresas ou da criação de alíquotas mais altas para o seu Imposto de Renda.

Michel Temer e aliados vão tentar colocar a Reforma da Previdência para votação na última semana de trabalho do Parlamento, entre os dias 18 e 22 de dezembro. Até lá, devem continuar distribuindo dinheiro dos nossos impostos aos deputados e seus patrocinadores, tentando convencê-los que o suicídio político de aprovar a mudanças nas aposentadorias à beira do calendário eleitoral pode ser vantajoso a eles.

Se quem está à frente do país não segue as regras, outros grupos sentem-se à vontade para não respeitar limites. Esse clima de "tudo pode" ajudou a criar ondas de violência no campo contra trabalhadores rurais e indígenas, a aumentar a violência contra pessoas em situação de rua e cidadãos que sofrem de dependência de drogas, a fazer subir a violência contra comunicadores e movimentos sociais.

Em escolas públicas, professores têm sido vítimas de ameaças e assédios por parte de membros de milícias digitais ou de movimentos totalitários contra o livre pensamento. Muitos estão com medo de voltar à sala de aula devido ao macarthismo tupiniquim – que tem contado com o apoio de formadores de opinião e políticos.

Dar uma aula sobre o que são direitos humanos tornou-se imperdoável. Tratar sobre as diferentes formas de violência contra a mulher virou abominação. Enquanto isso, graças ao Supremo Tribunal Federal e ao Ministério da Educação, rezar na sala de aula de uma escola pública passará a ser cena comum.

Talvez tão comum quanto queimar bonecos representando pensadores e intelectuais – como ocorreu em um protesto contra a filósofa Judith Butler, uma das maiores pesquisadoras sobre gênero do mundo, em frente ao local onde ela deu palestra em São Paulo, em novembro passado. Depois, ela viria a ser agredida no aeroporto de Congonhas pelos mesmos manifestantes.

Lembram da professora hostilizada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro após uma conferência sobre o centenário da Revolução Russa? Um jovem levantou-se e começou, aos gritos, a ofendê-la, dizendo que nunca houve ditadura no Brasil. Os pedidos dos demais presentes para que ele e seus colegas se acalmassem e dialogassem educadamente não surtiram efeito e a segurança foi chamada. O grupo dizia que estava filmando tudo e enviaria para o Exército.

Outro caso que chocou foi o de pesquisadoras que estudam gênero receberem ameaças de morte na Universidade Federal da Bahia. Uma banca de defesa teve que contar com proteção especial de segurança devido às amaeaças.

Que tipo de limite pode ter restado a um país em que um engenheiro de 60 anos assassina a tiros seu filho, um universitário de 20, por – de acordo com a polícia – discordar de que o jovem participassem de protestos estudantis e por ser contra as preferências políticas do rapaz? O filho chegou a fugir, mas foi perseguido de carro pelo pai, que o matou. E, depois, cometeu suicídio.

Sempre tivemos um enorme déficit de formação para a empatia, para reconhecer no outro alguém que tem os mesmos direitos que nós. Mas também para a cultura política do debate – infelizmente, não somos educados, desde cedo, para saber ouvir, falar, respeitar a diferença e, a partir daí, construir consensos ou saber lidar com o dissenso. Não somos educados para a tolerância e a noção de limites.

Mais do que nunca, é hora de lembrar qual a função da escola. Educar por educar, passando apenas dados e técnicas, sem conscientizar o futuro trabalhador e o cidadão do papel que ele pode vir a desempenhar na sociedade, sem considerar a realidade à sua volta, sem ajudá-lo a construir um senso crítico e questionador sobre o poder, seja ele vindo de tradições, corporações, religiões ou governos, é o mesmo que mostrar a uma engrenagem o seu lugar na máquina. A um tijolo, em qual parte do muro deve permanecer – e é isso o que deseja uma grande quantidade de milícias digitais e movimentos fundamentalistas.

Uma das principais funções da escola deveria ser "produzir" pessoas pensantes e contestadoras que podem – no limite – colocar em risco a própria sociedade do jeito que a conhecemos, fazendo ruir a estrutura política e econômica montada para que tudo funcione do jeito em que está. Em outras palavras, educar pode significar libertar ou enquadrar. Pode ajudar às pessoas a descobrirem como quebrar suas próprias correntes ou ser o pior cativeiro possível, fazendo com que vítimas se tornem cães de guarda de seus agressores.

Presos na cortina de fumaça da suposta doutrinação que estaria ocorrendo nas escolas, empobrecemos um pouco mais o debate sobre educação. Ganha quem aposta que o resultado de toda essa confusão será a contenção dos pequenos avanços civilizatórios da área nos últimos anos. Pois, como bem disse Paulo Freire, todos somos orientados por uma base ideológica. A discussão é se a nossa é includente ou excludente. Mas se as pessoas que mais precisariam fazer essa reflexão chamam Paulo Freire de "lixo", será uma grande caminhada até que percebam o tamanho da corrente que prende seus próprios pés.

Pois quando pede-se que o professor e a escola se omitam ou sejam proibidos de lançar um olhar crítico sobre o mundo, dizendo que isso só serve para doutrinação, a ideologia hegemônica na sociedade ocupa silenciosamente o espaço deixado. E, com isso, ensina aos jovens que tudo está bem quando, na verdade, eles – desesperadoramente – sentem o contrário.

Em um Estado autoritário, o professor contestador é tratado como inimigo público da sociedade.

No mesmo Estado, um deputado que topa vender seu voto pela Reforma da Previdência é recebido com pompa pela Presidência da República e chamado de herói pelo mercado.

Não admira, portanto, que policiais no Rio tenham tirado selfies com Rogério 157, líder do tráfico na Rocinha.

Afinal, por aqui, as prioridades são outras.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto