Neste Natal, Jesus nascerá negra e pobre para ser morta por "homens de bem"
Leonardo Sakamoto
24/12/2017 12h45
Moradores surpreendidos por reintegração de posse no Estado de São Paulo. Foto: Cassio Rossevelt/Reuters
Jesus seria mulher e negra, talvez transexual, caso nascesse nos dias de hoje. E o mundo a mataria em nome de Deus.
Quando defendi isso neste espaço pela primeira vez, há alguns anos, quase apanhei na rua (expressão que deixou de ser figurativa neste Brasil em que a intolerância saiu do armário e pode ser eleita presidente) por pessoas que estão tão dentro de suas caixinhas que não conseguem perceber a beleza de sua própria fé.
Considerando que Jesus foi transgressor em sua época, se ele voltasse à Terra seria tudo aquilo que é considerado inferior, marginal, blasfêmico ou de segunda classe. Ou você acha que ele viria coberto de ouro e moraria nos Jardins ou na Barra da Tijuca?
Como uma mulher negra ou uma trans significaria que escolheu viver como alguém que é diariamente vilipendiada, considerada cidadã de segunda classe, tratada como força de trabalho barata ou como objeto sexual descartável. Iria fazer parte da resistência e, portanto, seria odiado por aqueles que não abrem mãos dos seus privilégios. Muitos daqueles que, hoje, vomitam seu nome.
Um relatório divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) junto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que a violência aumentou contra mulheres negras. Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras diminuiu 7,4%, o indicador equivalente para as negras cresceu 22%. Isso não é novidade para ninguém, como também não é notícia o fato de que uma mulher negra recebe, em média, muito menos pelo menos serviço que um homem branco.
Além disso, a quantidade de ataques e de censuras judiciais sofridos pela peça de teatro "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", que coloca no papel do messias na pele de uma mulher transexual, é paradigmático deste tempo. Ler as sentenças que proibiram a exibição da montagem, aliás, é didático. Em uma delas, o magistrado escreveu: "De fato, não se olvide da crença religiosa em nosso Estado, que tem JESUS CRISTO como o filho de DEUS, e em se permitindo uma peça em que este HOMEM SAGRADO seja encenado como um travesti, a toda evidência, caracteriza-se ofensa a um sem número de pessoas". Os destaques em letras maiúsculas são do próprio magistrado. Ofensa? "Vestir" Jesus como uma travesti, identidade estigmatizada e marginalizada, é uma mensagem de amor e tolerância.
Se houver um Deus, ele ou ela não morrerá de vergonha por causa daqueles que tocam a vida da forma que os faz mais felizes. Mas por conta dos que lançam preces e cantam musiquinhas para louvar seu nome – para, logo depois, censurar, ofender, cuspir, bater, esfolar, censurar e matar também em sua honra. Nessa hora, deve experimentar um sentimento louco de culpa somado à vergonha alheia. Pois pensa: "Será que as pessoas acham que eu quero sacrifícios humanos?"
Deve pensar que falta amor no mundo, mas também falta interpretação de texto. Como disse um amigo meu, que é pastor e está horrorizado com o clima de inquisição, seria tão bom se as pessoas entendessem o que está escrito no Evangelho de João, capítulo 3, versículo 17: "Deus enviou o seu filho ao mundo não para condenar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por meio dele".
Se Jesus voltasse defendendo a mesma ideia central presente nas escrituras sagradas do cristianismo (e que, por ser tão simples, não são levadas a sério) e andando ao lado dos mesmos párias com os quais andou, seria humilhada, xingada, surrada, alfinetada e explodida. Ela seria chamada de mendiga e de sem-teto vagabunda, olhada como operária subversiva, alcunhada como agressora da família e dos bons costumes, violentada e estuprada, rechaçada na propaganda eleitoral obrigatória em rádio e TV, difamada nas redes sociais, censurada pela Justiça. Teria seu barraco queimado e toda sua vida transformada em cinzas em uma reintegração de posse. Seria finalizada como comunista, linchada num poste pela população em nome da fé e das tradições. Receberia socos e pontapés dos hoje autointitulados sacerdotes do Templo. Supostos representantes dos interesses de Deus na Terra que afirmam lutar pelo direito de expressarem suas crenças, quando querem o privilégio de vomitarem seu ódio diante daquilo que acham que pode ameaçar seu controle sobre o povo. E, ao final, alguém ainda tiraria uma selfie ao lado de seu corpo morto para postar no Instagram.
Encaremos a realidade: se Jesus voltasse à Terra, nós a mataríamos em seu próprio nome. Pelo menos, 50 vezes.
O discurso de ódio transforma a massa em turba e provoca distorções de entendimento sobre as palavras que estão na origem da fé das pessoas. Estudei em escola adventista por nove anos e, ao mesmo tempo, participei ativamente da vida na igreja católica perto de casa. Hoje, como todos sabem, por não crer, vou para o inferno – que, pelo menos, é quentinho. Mas por conta do meu passado, sei razoavelmente bem o que está escrito nos evangelhos. E o discurso de intolerância que grassa na boca de muita gente não está na bíblia cristã.
Perfis nas redes sociais que consideram um absurdo uma messias mulher e trans enchem a boca para falar que a solução para a criminalidade é "Bandido bom é bandido morto" e, diante do atendimento a uma pessoa em situação de rua, grita "Tá com dó? Leva para casa". Triste saber que esse pessoal vai me fazer companhia no inferno pela eternidade.
O fato é que se intepretássemos por uma forma mais humana o que significa amar o seu semelhante como a si mesmo, dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, e todo o restante, entenderíamos que toda essa violência não faz sentido algum. O que significa amar alguém de verdade? E o que significa submeter alguém à minha vontade?
Por isso continuo achando a passagem mais legal dos Evangelhos o livro de Lucas, capítulo 23, versículo 34:
"Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem".
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.