Ministro de Temer diz que chantagem com dinheiro público não é chantagem
Leonardo Sakamoto
26/12/2017 19h00
O ministro Carlos Marun, responsável pela articulação do governo Temer com o Congresso Nacional, admitiu que o Palácio do Planalto está condicionando a liberação de financiamentos da Caixa Econômica Federal a Estados à pressão de governadores sobre deputados federais para que aprovem a Reforma da Previdência. E, logo depois, disse que isso não se chama chantagem.
"Financiamentos da Caixa Econômica Federal são ações de governo, o governador poderia tomar esse financiamento no Bradesco, não sei aonde. Obviamente, se são na Caixa, no Banco do Brasil ou no BNDES são ações de governo. Nesse sentido, entendemos que deve sim ser discutido com esses governantes alguma reciprocidade no sentido de que seja aprovada a reforma da Previdência, que é uma questão que entendemos hoje de vida ou morte para o Brasil", explicou o ministro.
E, depois de tudo isso, talvez acreditando que o Brasil inteiro ainda está bêbado da Sidra do Natal e não ouviria, disse – sem o menor pudor: "Olha, eu não entendo que seja chantagem do governo atuar no sentido de que um aspecto tão importante para o Brasil se torne realidade, que é a modernização da Previdência".
Primeiro, vale lembrar que a Caixa, o Banco do Brasil e o BNDES são instituições públicas, apesar dos governantes sistematicamente as tratarem como se fossem seus donos. O que está lá depositado pertence a correntistas, investidores, trabalhadores com contas de FGTS e ao país, ou seja, a todos nós. A decisão de financiamento usando esses recursos deve ser feita obedecendo a regras claras, visando a beneficiar seus donos, investidores e, por ser estatais, a coletividade – como no caso do financiamento de moradias. E fazer isso com base no princípio da impessoalidade, previsto no artigo 37 da Constituição Federal.
Mesmo que o governo tenha rubricas totalmente discricionárias vinculadas a contas nesses bancos, às quais possa dar o destino que quiser, ainda assim essa ação extrapolaria qualquer limite republicano. No mínimo, isso deveria ser passível de uma investigação por improbidade administrativa por desvio de finalidade.
Além disso, reconhecer publicamente que uma instituição financeira está sendo utilizada como instrumento de pressão é colocar em segundo plano a qualidade de vida de cidadãos dos Estados que dependem desses recursos. E considerando que Temer busca a aprovação da reforma para manter o apoio do mercado e de grandes empresas e continuar no poder, há um claro interesse particular por trás dessa chantagem.
É deplorável quando políticos usam de expediente para tentar convencer a sociedade de algo ao invés de convocarem um debate público honesto a respeito do tema. Desde o começo, o governo federal tem usado da chantagem para passar à força uma polêmica Reforma da Previdência que não estava em nenhum programa eleito pelo voto popular e que é rechaçada pela maioria da população, de acordo com pesquisas de opinião.
De campanhas pagas pelo PMDB com imagens de cidades destruídas, passando por declarações da cúpula de governo de que as próximas gerações vão ranger os dentes e que não haverá recursos para as pensões ou de aliados afirmando que o país mergulhará num inferno sombrio de dor. O esgarçamento institucional promovido pelo processo de impeachment fez com que o Brasil trocasse o diálogo pela pura ameaça como instrumento para governar. Agora, a chantagem chega aos governadores.
Marun foi líder da tropa de choque de Michel Temer na Câmara, relator da CPMI da JBS e amigão de Eduardo Cunha – tendo visitado o ex-presidente da Câmara dos Deputados na prisão em Curitiba usando dinheiro do contribuinte. Confunde o público com o privado, tendo feito de seu cargo um trampolim para interesses pessoais. Agora, como ministro-chefe da Secretaria de Governo, deve ampliar o mercado a céu aberto em que se transformou a relação entre o Executivo e o Legislativo.
"O governo vai atuar nessa questão com a seriedade e a gravidade que a questão possui. Realmente o governo espera daqueles governadores que têm recursos a serem liberados, financiamentos a serem liberados, uma reciprocidade no que tange a questão da Previdência", admitiu Marun nesta terça.
Enquanto isso, o governo nega que a atual proposta da Reforma da Previdência vá atingir grupos mais vulneráveis – e sem corar a face. Mas o projeto prevê redução no valor da pensão daqueles que já se aposentam por idade, ou seja, os mais pobres – ela irá de 85% para 60% do valor integral. E traz mudanças que dificultam a aposentadoria especial a trabalhadores rurais da economia familiar. Basta ler as contradições presentes nas mudanças previstas no artigo 201 com o que está, hoje, no artigo 195 da Constituição Federal.
Como já disse aqui, vivemos a "Era do Foda-se". Sabe aquele esforço para se preocupar com as consequências das próprias ações e palavras e, no mínimo, manter as aparências? Então, ele se aposentou ou tirou férias, mandando avisar que só dá as caras quando a democracia plena voltar ao Brasil. Até lá, cada autoridade ou membro da elite deste país pode falar ou fazer o que quiser, sem medo da repercussão negativa junto à população. Até porque, convenhamos, foda-se.
Alguns dizem que isso vai gerar uma transparência sem igual na sociedade que nos levará a um patamar superior da existência no futuro e o melhor é tudo acontecer à luz do dia ao invés de se passar nos porões do Palácio do Jaburu. Há uma falsa dualidade nessa história, como se fossem possíveis apenas duas opções: pessoas que fazem coisas erradas e são sinceras e pessoas que fazem coisas erradas e mentem. Há a alternativa de fazer a coisa certa e ser sincero, mas – pelo visto – essa está no campo da ficção.
A Era do Foda-se tem suas consequências. Vendo autoridades darem de ombros, a população vai deixando de acreditar naquilo que nos mantém unidos como país. E passam a descumprir leis, regras e normas porque percebem que não valem muita coisa mesmo. E iniciado, o processo de derretimento das instituições e do respeito da população a elas não pode ser freado do dia para a noite.
O Brasil que chama "chantagem" de "ação de governo" é o mesmo Brasil que não "demite empregados", mas "descontinua a relação com colaboradores".
Provavelmente, o Brasil de Temer e de Marun é esse. Nele, o que é "agrotóxico" passa a ser "produto fitossanitário". "Trabalho escravo" é "serviço sob remuneração alimentar". "Desmatamento ilegal" é "retirada não comunicada de cobertura vegetal". "Latifúndio improdutivo", "investimento à espera de rentabilização". "Trabalho infantil", "educação laboral formativa de caráter". "Genocídio indígena", "processo de aculturação em larga escala". É o Brasil que chama "assédio sexual" de "mal entendido". O problema é que o resto de nós vive no Brasil real, que sofre quando os crimes são relativizados em nome da tranquilidade da mesma elite política de sempre.
Temer acertou ao ter colocado Carlos Marun como ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. Ele faz tudo o que for preciso para agradar o chefe. Inclusive, passar vergonha. Foi assim com Eduardo Cunha. Por que agora seria diferente?
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.