O orgulho de ser "burro" mostra que o poço não tem fundo no Brasil
Leonardo Sakamoto
10/03/2018 13h44
Confesso que tenho cada vez menos paciência para casos patológicos de burrice violenta. Aquela que não fica no seu cantinho, mas mostra os dentes e morde.
Antes de prosseguir, vale o aviso: burrice não é a falta de um conhecimento específico. Um camponês de uma comunidade isolada pode não saber navegar na internet. Mas duvido que você saiba produzir alimento a partir da terra como ele. É impossível saber sobre tudo e a beleza de estar em sociedade é a complementaridade dos saberes, a ponto de precisarmos uns dos outros para sobreviver.
Burro também não é quem separa sujeito e predicado por vírgula. Muita gente não entende isso e desvaloriza a opinião do outro por não compartilhar dos mesmos padrões de fala ou do mesmo universo simbólico. Algumas das pessoas mais sábias que conheci são iletradas. E alguns dos maiores idiotas têm doutorado. Significa que os iletrados são melhores que os doutores? Não. Então, o contrário? Também não. Pois é burrice achar que usar ou não a norma culta da língua é condição para participar do debate público.
Trato aqui da burrice de quem menospreza o conhecimento, seja ele qual for, chegando a odiar quem o detém ou quem busca aprendizado.
Da burrice prepotente e apressada, que xinga um texto ou vídeo na rede sem ter consumido nada além de seu título ou visto o nome do autor ou autora. E, diante das críticas sobre a superficialidade desse comportamento, rosna, dizendo – no melhor estilo Donald Trump – que tudo o que é importante pode ser escrito em uma linha ou um tuíte. Ou que acredita que um produto é ruim simplesmente por não ter ido com a cara do rótulo.
O burro é aquele que vê seu preconceito violento como sabedoria.
Essa burrice, montada na soberba, pensa que já sabe de tudo a ponto de tachar os que discordam de sua visão de mundo como mal informados, comprados ou manipulados sem apresentar dados e fatos que corroborem a crítica. Ou tenta calar as vozes diferentes da sua por encarar a dissonância como ruído e não como música.
Pois a burrice sempre tenta destruir o conhecimento que ameaça jogar luz sobre ela própria.
Antes, se alguém me mostrasse uma imagem de pessoas enlouquecidas em torno de montanhas de livros em chamas, eu me lembraria de "Fahrenheit 451", de François Truffaut (1966). No filme, livros são proibidos, sob o argumento de que tornam as pessoas infelizes e improdutivas. Quem lê é preso e "reeducado". Se uma casa tinha livros, "bombeiros" eram chamados para queimar tudo.
Hoje, se me mostrassem uma imagem assim, logo me perguntaria: onde foi desta vez? Algum grupo fundamentalista islâmico, cristão, judeu ou budista? Interior dos Estados Unidos? Neonazistas europeus? África? Coreia do Norte? China? São Paulo, Rio ou uma grande cidade brasileira?
No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos por pensarem diferente da maioria. A Alemanha "purificou pelo fogo" as ideias imundas deles, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Santa Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar de sua interpretação da bíblia.
A burrice também é incapaz de aceitar o próprio erro, transferindo a culpa para o outro. Ou, diante de um questionamento, foge da autocrítica, dizendo que outra pessoa ou partido também faz a mesma coisa. A burrice não pede desculpa.
Pois a burrice de um indivíduo acha que é absolvida pela burrice de outro indivíduo ou do coletivo.
Nesta semana, a página de um grupo de extrema direita fez uma enquete entre seus seguidores, questionando quem eles "jamais" votariam para presidente. Muitos interpretaram mal a pergunta e responderam o inverso, em quem votariam. Até aí, tudo bem. Quem nunca?
Então, os administradores da página informaram várias vezes sobre o erro de interpretação. O que fizeram os seguidores? Culparam o grupo por ter feito uma pergunta "errada". A certa seria a pergunta de sempre, sem a inversão do "jamais", ou seja, aquilo que não levasse à reflexão. Neste caso, pensar foi visto como um erro e tratado como tal.
A burrice não aceita a existência de outra versão que interprete os fatos além da sua. É incapaz de reafirmar sua visão e, ao mesmo tempo, conviver com análises divergentes. Enxerga a opinião alheia como "notícia falsa" não por desconhecer a diferença entre formatos de textos narrativos e opinativos, mas por não admitir o conteúdo. A burrice de alguns seguidores de políticos que não aceitam a existência de divergências ocorre da direita à esquerda, ou seja, não é monopólio de ninguém.
Isso só vai ser resolvido com a qualificação do debate público. De acordo com o sociólogo Bernard Charlot, um saber só tem valor e sentido por conta da relação que ele produz com o mundo. Quando o debate público for mais qualificado, a pessoa se sentirá mais motivada a procurar se informar melhor e de maneira mais plural a fim de conviver com seus pares nas redes sociais ou mesmo na vida offline.
Ler coisas com as quais concordamos e com as quais não concordamos é um primeiro passo. Ler fontes de informação que não sejam anônimas, ou seja, que se responsabilizam pelo que divulgam, é outro. Preferir fontes que baseiam seus relatos em provas e não em suposições ou teorias da conspiração. Que são gostosas, mas burras.
A escola deve promover debates e reuniões para que todos entendam que tipo de mensagem estão passando a seus filhos – ainda mais neste ano eleitoral. Dois pais ou duas mães que defendam o voto em um candidato X e dois pais ou duas mães que defendam o voto em um candidato Y podem ser convidados para apresentar seus pontos de vista para os alunos em uma turma, de forma respeitosa. Pois a aprender como fazer a discussão de valores com respeito a ideias divergentes é tão importante quanto absorver conhecimento técnico. Quando uma escola fecha os olhos a isso, transmite uma ideia. Em outras palavras, o silêncio não é neutro.
A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam pertinente o fogaréu nazista descrito acima, levado a cabo por estudantes que apoiavam o regime. Deu no que deu. Hoje, vemos muitos se acovardarem diante de ondas burras, intolerantes e violentas frente ao conhecimento. Não, não estou comparando nossa sociedade com a nazista. Apenas dizendo que a burrice pode ser atemporal. E universal.
Como sempre digo: falta amor no mundo, mas falta interpretação de texto. E calmante na água de muita gente.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.