Moro defende auxílio-moradia para completar salário. Vale para professores?
Leonardo Sakamoto
26/03/2018 23h58
Da próxima vez que os professores da rede pública forem pedir aumento, sugiro que adotem o argumento do juiz Sérgio Moro. Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na noite desta segunda (26), ele – que é um dos magistrados que recebem auxílio-moradia mesmo tendo imóvel próprio no município em que trabalham – afirmou que "ter vencimentos não compatíveis com o que se paga no mercado é ter uma magistratura de baixa qualidade".
Cito professores porque foi a última categoria a sangrar nas mãos do poder público, aqui em São Paulo (de onde a entrevista foi transmitida), durante um protesto por melhores condições de trabalho há duas semanas. No caso, contra o projeto de reforma da previdência municipal proposta pelo prefeito João Doria.
Mas também poderia falar de policiais, enfermeiros e outros servidores públicos que ganham pouco e ainda são chamados de "marajás" por parte da população que não consegue compreender a existência de diversas categorias de funcionalismo.
Concordo com ele que o trabalho dos magistrados é importantíssimo, mas dos professores também é. E se esse argumento vale para juízes, também deveria valer para outras categorias: remunerar abaixo do mercado é ter um serviço público de baixa qualidade. Então, como fazemos?
Garantimos auxílio-moradia para compensar baixos salários de docentes? Desconfio que milhões deles não possuem casa própria, vivendo de aluguel.
"Sim, existe esse benefício, que é questionável, mas existe a previsão constitucional que os subsídios dos magistrados deveriam ser reajustados anualmente, o que não ocorre há três anos", afirmou Sérgio Moro.
Falando em previsão constitucional, gostaria de lembrar de outra: o artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal. Ele prevê que o salário mínimo seja "capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e Previdência Social". E seja "reajustado periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim".
Ou artigo 6º, que afirma que a moradia é um direito social de todos os brasileiros. Mas, infelizmente, nem todos os brasileiros têm acesso à moradia. De acordo com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), há um déficit de 500 a 700 mil unidades habitacionais apenas em São Paulo. E, no Brasil, o buraco seria de 6,2 milhões.
O juiz, responsável pelos processos da Lava Jato, recebe auxílio-moradia apesar de possuir um imóvel próprio de 256 m² em Curitiba, conforme relatou a Folha de S.Paulo em fevereiro. Para garantir o valor de R$ 4378,00 mensais, ele se aproveitou da sempre recorrente decisão liminar de Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, que estendeu o benefício – que já era pago por alguns tribunais – a todos os juízes do país. Segundo o ministro, não fazer isso manteria uma diferenciação entre os magistrados. O recebimento não é automático e depende de solicitação individual.
Porém, quando brasileiros buscam a efetivação do seu direito a um salário ou a uma moradia são carinhosamente tratados pela polícia com bombas, balas de borracha e cassetetes. Que, muitas vezes, são consequência de ordens judiciais.
Em valores de hoje, para assegurar o que é previsto na Constituição, o salário mínimo – segundo cálculo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) – teria que ser de R$ 3.682,67 mensais. Bem menos, portanto, que o auxilio-moradia pago aos magistrados individualmente.
A desigualdade é nociva porque dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Ao mesmo tempo, há a percepção (correta) de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres – ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for.
Não há previsão para a presidente Cármen Lúcia levar a liminar concedida por Fux, que libera o auxílio-moradia a todos os magistrados brasileiros, à discussão no plenário do Supremo Tribunal Federal. E nem previsão para a desigualdade estrutural brasileira ser reduzida a níveis aceitáveis de convivência.
Por isso que eu sempre digo: heróis não são políticos ou juízes. Herói é quem com muito pouco, e apesar de todas as adversidades, opera um milagre e sobrevive no Brasil.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.