TSE cita notícia falsa sobre notícia falsa para investigar notícias falsas
Leonardo Sakamoto
28/03/2018 19h30
O ministro Luiz Fux, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, decidiu abrir procedimento junto ao Ministério Público Eleitoral para verificar a possível ocorrência de irregularidades apontadas em estudos da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade de São Paulo sobre notícias falsas, inclusive com a utilização de robôs. O objetivo é evitar influências indevidas nas eleições de outubro.
"Vamos instaurar um procedimento que será remetido ao Ministério Público, que vai solicitar o auxílio da Polícia Federal para nós verificarmos que tipo de material essas organizações têm à sua disposição", disse Fux, nesta terça (27).
Sobre o material da USP a respeito do tema, o site do TSE, até a publicação deste texto, citava "um levantamento da Associação dos Especialistas em Políticas Públicas de São Paulo, com base em critérios de um grupo de estudo da USP" que conseguiu identificar "os maiores sites de notícias do Brasil que disseminam informações falsas, não-checadas ou boatos pela internet".
Só tem um problema: o estudo supracitado é, em si, uma notícia falsa.
"Esse suposto estudo não passa de um grande mal-entendido", afirma Pablo Ortellado, professor de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo e coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital da mesma instituição. "Ele nasceu de um despretencioso post de Facebook da Associação dos Especialistas em Políticas Públicas que listou alguns sites, a partir da longa lista de sites que monitoramos, que escondiam seus responsáveis." A relação sugeria que esconder o responsável pelo site era um indício de que ele distribuía notícias falsas.
Segundo ele, a partir daí, foi só distorção: um levantamento despretensioso, que não tem qualquer caráter científico, virou ranking. O que era um indício de que poderiam fazer notícias falsas, virou atestado de que faziam notícias falsas. E a USP, que era apenas a fonte original a partir da qual os sites foram escolhidos, virou a instituição que fez o estudo.
Uma notícia falsa sobre esse estudo foi criada e passou a ser distribuída pela rede. De acordo com Ortellado, que é referência no estudo de desinformação online no Brasil, ela já foi repercutida por um rosário de sites e páginas, compartilhada por jornalistas, professores universitários e muitos políticos, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. "Somados, os sites conseguiram mais de 220 mil compartilhamentos", afirma.
A Associação dos Especialistas em Políticas Públicas do Estado de São Paulo fez uma nota de esclarecimento no lugar do post no qual havia sido publicado o levantamento original no dia 24 de janeiro de 2017. "Para evitar a propagação de mal entendidos, retiramos a publicação de nossa página e aproveitamos para agradecer a todos que têm contribuído para o aprimoramento da nossa atuação. Asseveramos que nossa intenção sempre foi contribuir para o fortalecimento da democracia, da transparência e dos princípios éticos e jornalísticos (…) Revisaremos nosso material e seguiremos sempre dispostos ao diálogo, estando à disposição para eventuais esclarecimentos."
Ortellado cansou de vir a público explicar que não há estudo da USP que identificou os mais-mais da falsidade, mas a informação continua circulando.
Talvez pela paixão do ser humano em fazer e consumir listas. Talvez porque alguns dos sites e páginas listados são realmente produtores e reprodutores de conteúdo hiperpartidarizado e voltado à desinformar e manipular ou simplesmente de notícias falsas mesmo. Talvez porque a lista conte apenas com sites e páginas que estão à direita no espectro político, fazendo com que parte da esquerda se veja contemplada pela relação e compartilhe para mostrar o quão o outro lado é errado e mau.
Se até o órgão que afirma estar dedicado a combater notícias falsas nas eleições cai em uma notícia falsa, o que dirá do restante dos brasileiros?
Por fim, torço para que o Ministério Público Eleitoral e a Polícia Federal, antes de começarem a investigação, usem uma avançada ferramenta de pesquisa tecnológica em ambiente digital chamada "Google" para checar a existência e a veracidade do estudo. Isso pode poupar dinheiro do contribuinte.
Atualização no dia 29/03/2018, às 18h30: A assessoria de comunicação do Tribunal Superior Eleitoral entrou em contato com o blog nesta quinta (29). Alertados do problema, alteraram o conteúdo do comunicado divulgado. E informaram que o convite para participar do processo, que atuará para estruturar uma ação preventiva visando às eleições, será feito ao Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (USP) – responsável pelo Monitor do Debate Político no Meio Digital.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.