Guiados por notícias falsas e pelo ódio, cristãos matariam Jesus de novo
Leonardo Sakamoto
31/03/2018 04h49
A tradição ibérica de Malhar o Judas no Sábado de Aleluia consiste em fazer um boneco de pano, papel, serragem, jornal, o que seja, para representar Judas Iscariotes – o delator de Jesus – e humilhá-lo, xingá-lo, surrá-lo, queimá-lo, alfinetá-lo, explodi-lo. Hoje é Sábado de Aleluia, dia anterior à Páscoa, e alguns Judas serão transformados em pó em ruas e praças de todo o país.
A bem da verdade, o costume vai caindo em desuso. Para além do desinteresse de parte das novas gerações em manter vivo esse linchamento simbólico, há o fato de que, diariamente, milhares de autointitulados cristãos já escolhem seus Judas para serem malhados, sem dó ou piedade, nas redes sociais.
O que me leva a crer que esse pessoal não entendeu a sabedoria presente nas palavras escritas nos evangelhos, baseadas na ideia de compaixão e de diálogo. Mais uma vez, repito: falta amor no mundo, mas também falta interpretação de texto.
A começar por certos padres e pastores, políticos e comunicadores que podem até não trucidar com as próprias mãos os opositores de suas ideias, mas despejam tanto ódio a certos grupos sociais que seus fiéis e seguidores acabam fazendo o trabalho sujo, achando que estão operando a "vontade de Deus". Se houver algum Deus, ele deve se arrepender de ter enviado o meteoro que destituiu os dinossauros como espécie dominante do planeta.
A Malhação do Judas não é um treino para linchamentos de rua que acontecem aqui e ali – provando que nós somos umas bestas quadradas. Mas a alegria de trucidar o boneco e, através desse ato, descarregar as iniquidades e injustiças que enfrentamos no dia a dia, tem um paralelo com a sensação de (falso) reequilíbrio obtido através de um linchamento, que promete "justiça" quando a massa considera que a Justiça convencional não foi o bastante ou não funcionou.
O discurso de ódio, que transforma a massa em turba, nas ruas ou nas redes, provoca distorções profundas no entendimento da realidade. As pessoas perdem a capacidade de refletir sobre suas palavras e ações.
Foi o que aconteceu com Jesus, em 2014, no Guarujá, litoral de São Paulo. Fabiane Maria de Jesus não usava crianças em rituais de "magia", como foi acusada. Mas, mesmo assim, ela foi perseguida, espancada e morta por uma turba enlouquecida de moradores. Eram guiados por uma notícia falsa sobre sacrifício humano e um retrato falado que os agressores juravam ser ela.
Nas últimas semanas, o ódio gestado na redes sociais se transformou em paus, pedras, ovos, quebrando e machucando, integrantes da caravana do ex-presidente Lula pela região Sul. Até que o ódio se converteu em tiros contra os ônibus.
Estudei em escola adventista por nove anos e, ao mesmo tempo, participei bastante da vida na igreja católica perto de casa. Hoje, como todos sabem, vou para o inferno (o que não é de todo o mal porque, dizem, que lá é um lugar quentinho e tem gente legal para conversar, como Karl Marx e Stephen Hawking). Mas por conta do meu passado, sei razoavelmente o que está escrito nos evangelhos.
O discurso de intolerância que grassa na boca de muita gente que se acha "o povo de deus", de católicos a neopentecostais, não está nos quatro livros do Evangelho cristão. Pessoas que acham um absurdo não comer peixe na Sexta-Feira Santa ou não ir à missa/culto no Domingo de Páscoa, mas enchem a boca para falar que a solução para a criminalidade é "bandido bom é bandido morto". E, diante das críticas ao atendimento por vezes violento a uma pessoa em situação de rua, grita "Tá com dó? leva para casa".
Não dá para dizer para um desconhecido "você não entendeu nada do que o tal de Jesus de Nazaré disse". Seria muito arrogante e ofensivo à liberdade de que ele dispõe. Mas que dá vontade, ah, dá, principalmente porque liberdade não é algo absoluto, acaba quando você a usa para causar dor a alguém. Liberdade também não admite censura prévia, mas demanda responsabilidade e prevê responsabilização.
O fato é que se tivessem interpretado por uma forma mais humana o que significa amar o seu semelhante como a si mesmo, dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, e todo o restante, entenderíamos que professar homofobia, racismo e machismo não faz sentido algum.
Como já disse aqui várias vezes, tenho a certeza de que se Jesus, o personagem histórico, vivesse hoje, defendendo a mesma ideia presente nas escrituras sagradas do cristianismo, mas atualizando-a para os novos tempos, seria humilhado, xingado, surrado, queimado, alfinetado e explodido não só num Sábado de Aleluia, mas também em dias menos santos. Seria chamado de defensor de bicha, mendigo e sem-terra vagabundo. Olhado como subversivo, acusado de "heterofóbico" e "cristofóbico". Alcunhado como agressor da família e dos bons costumes. Finalizado como comunista.
Daí, a passagem mais legal dos Evangelhos: Lucas, capítulo 23, versículo 34: "Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem".
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.