Incêndio em SP é fruto da omissão do poder público em políticas de moradia
Leonardo Sakamoto
01/05/2018 12h50
Os governos federal, estadual e municipal – não apenas as atuais gestões, mas também a maioria das anteriores – são corresponsáveis pelo incêndio do prédio de 24 andares ocupado no Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo, na madrugada desta terça (1).
O poder público não risca o fósforo, gera o curto-circuito ou entulha o lixo que foi combustível da desgraça. Mas sua incompetência em resolver o déficit habitacional urbano armou uma grande fogueira pronta para queimar.
Ainda verifica-se o número de mortos e desaparecidos entre as 150 famílias ali cadastradas, mas por muito pouco não tivemos uma tragédia de grandes proporções. Os moradores afirmam que perderam o pouco que tinham.
Desde que o prédio foi ao chão, autoridades já reclamaram da demora da Justiça em conceder reintegração de posse do edifício ao governo federal ou criticaram veladamente os moradores por continuarem naquele espaço apesar do risco. Nada de tratar o caso como o resultado da insuficiência de políticas públicas efetivas para moradia voltadas à camada mais pobre da população.
Aliás, um esforço descomunal é gasto na construção de discursos para tentar dissociar causa e efeito quando o assunto é a questão dos sem-teto na capital paulista. As famílias que, não tendo onde morar, refugiaram-se naquele local precário, sem condições de garantir dignidade, são vítimas sob todos os pontos de vista possíveis. Ninguém se sujeita a compartilhar o espaço de suas crianças com ratos e baratas porque gosta, mas porque é o seu último recurso.
O artigo 6º da Constituição Federal afirma que a moradia é um direito social de todos os brasileiros. Mas, infelizmente, nem todos os brasileiros têm acesso à moradia. Há um déficit de 500 a 700 mil unidades habitacionais apenas em São Paulo. E, no Brasil, o buraco seria de 6,2 milhões. Enquanto isso, magistrados recebem um auxílio-moradia de R$ 4378,00 mensais mesmo tendo imóveis próprios na cidade em que vivem.
A situação na madrugada de hoje chama atenção do público pela cena dantesca que é um prédio grande desabar em chamas no centro de uma cidade que tem, ainda na lembrança, os mortos dos incêndios dos edifícios Joelma e Andraus. Mas a situação não difere muito das tantas favelas que queimaram "espontaneamente" até o chão em São Paulo, anos atrás, para a alegria da especulação imobiliária ou de muitos "cidadãos de bem" que tem horror estético a barracos.
Ao longo do tempo, fomos expulsando os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas. Eles, que têm menos recursos financeiros, gastam mais tempo e mais de sua renda com transporte do que os mais ricos que ficaram nas áreas centrais – com exceção das Alphabolhas da vida. Ocupações, cortiços e favelas em regiões de fácil acesso abrigam centenas de famílias. Sem o mínimo de saneamento básico, às vezes sem água e sem luz.
A maioria dos moradores desses locais prefere continuar assim, pois transporte é o que não falta e a casa fica próxima ao trabalho – ao contrário do que acontece em bairros da periferia, onde o trajeto até o centro chega a levar três horas, dentro de ônibus superlotados e caros.
O vácuo de ações públicas também permite que sem-teto sejam explorados por falsos movimentos sociais, que – ao contrário daqueles tantos que lutam pela dignidade coletiva – querem apenas ganhar com a tragédia alheia.
Famílias que ganham até três salários mínimos representam mais de 70% do déficit habitacional, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mas a política habitacional tem sido substituída pelo crédito imobiliário, com o Estado abandonando a opção de gastar dinheiro com programas de moradia aos mais pobres para concentrar esforços em ser um grande banco para a classe média e um grande amigo das empreiteiras. Lembrando que o Estado não tem que dar lucro, mas garantir dignidade.
Por que uma ocupação é vista, por muitos, como uma violência à cidade? A resposta talvez passe pelo fato de terem conseguido treinar tão bem parte da classe trabalhadora para ser cão de guarda de quem a oprime que, quando se discute a necessidade de radicalizar os programas de moradia popular, alguém grita no fundo de sua ignorância a expressão que demonstra que a incapacidade de sentir empatia: "Tá com dó? Leva pra casa!"
Tratam de forma individual e pessoal algo que deveria ser encarado como função do poder público. Afinal de contas, para além de créditos, subsídios e financiamentos, o déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se imóveis e terrenos vazios em nome da especulação imobiliária, muitos acumulando gigantescas dívidas em impostos, pudessem ser desapropriados, reformados e rapidamente destinados a quem precisa – gratuitamente ou a juros abaixo do mercado, dependendo do nível de pobreza em questão.
A política habitacional no Brasil não é feita para resolver esses déficits, mas para alguém ganhar dinheiro e alguém manter poder. Infelizmente, muita habitação precária ainda vai queimar nesta cidade antes que um solução seja eficaz seja implementada.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.