Como o país do auxílio-moradia tem moral para expulsar pobres de ocupações?
Leonardo Sakamoto
06/05/2018 15h42
Temer é protegido com uma pasta durante protesto no Largo do Paissandu, após o incêndio. Esse segurança é um comediante nato. Foto: Nelson Antoine / AP
Enquanto os magistrados brasileiros tiverem à sua disposição R$ 4378,00 mensais de auxílio-moradia, nenhum juiz deveria assinar uma reintegração de posse sequer de qualquer imóvel ou terreno ocupado a menos que seja garantido um teto digno às famílias envolvidas. E teto digno não significa "precários alojamentos públicos" e "insuficiente apoio para aluguel".
A questão não é demagogia, mas a efetivação da lei. A Constituição Federal, documento cuja guarda e proteção é a razão de existência do Supremo Tribunal Federal diz, em seu artigo 5º, "que todos são iguais perante à lei, sem distinção de qualquer natureza". Não está escrito que "doutores" valem mais que a massa miserável da população. Se isso é salário travestido de benefício, que o STF assuma como tal.
Com a diferença que magistrados contam com salários satisfatórios para garantir sua dignidade, enquanto a xepa não consegue nem ter a carteira assinada. A base da retomada do governo Michel Temer tem sido em cima de postos de trabalho informais. E, no geral, o emprego formal patina. Segundo o IBGE, a taxa de desemprego ficou em 13,1% no primeiro trimestre deste ano. Maior que a do trimestre anterior (11,8%) e um pouco menor que aquela registrada no mesmo período do ano passado (13,3%). São 13,7 milhões de desempregados.
O artigo 7º, inciso IV, da mesma Constituição, afirma que o salário mínimo deveria ser capaz de garantir alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte, previdência social e, claro, moradia para uma família de quatro pessoas. Em valores de hoje, segundo cálculo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), isso demandaria R$ 3706,44 mensais.
Como a sociedade não garante esse pacote mínimo de qualidade de vida através de remuneração justa pelo trabalho desenvolvido, deveria possibilitar acesso à moradia à camada mais pobre da população. Afinal, o artigo 6º da Constituição afirma que isso é um direito social de todos os brasileiros. Mas estamos indo na contramão.
Em fevereiro do ano passado, alertei, neste blog, que o governo Temer estava reduzindo o foco na política de moradia que beneficiava os mais pobres. Essa categoria (com renda de até R$1800,00 mensais) conta com um patamar elevado de subsídios e critérios mais simples para adesão. Afinal, devido ao alto grau de informalidade entre os mais pobres, muitos não conseguem comprovar renda, nem dar garantias para ter um crédito bancário convencional.
A política habitacional tem sido substituída pelo crédito imobiliário, com o Estado abandonando a opção de gastar dinheiro com programas de moradia aos mais pobres – seja para desapropriar prédios e reformá-los, seja para comprar terrenos e erguer prédios – para concentrar esforços em ser um grande banco para a classe média e um grande amigo das empreiteiras. Lembrando que o Estado não tem que dar lucro, mas garantir dignidade.
Ninguém em sã consciência é contra ampliar crédito habitacional para a classe média poder adquirir sua casa própria. O problema é quando isso é feito em detrimento à execução de programas de habitação para os mais pobres, que são os que mais sofrem com a falta de moradias decentes. Enquanto isso, bilhões em dívidas públicas de empresas são perdoadas a cada novo refinanciamento no Brasil.
Famílias que ganham até três salários mínimos representam mais de 70% do déficit habitacional, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
De acordo com o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), há um déficit de 500 a 700 mil unidades habitacionais apenas em São Paulo. No Brasil, são 6,4 milhões, segundo a Fundação João Pinheiro. Se falarmos de moradias precárias, o buraco gira em torno de 10 milhões de unidades.
Sabe-se que o déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se imóveis vazios em nome da especulação imobiliária, muitos acumulando gigantescas dívidas em impostos, pudessem ser desapropriados e destinados a quem precisa – gratuitamente ou a juros abaixo do mercado, dependendo do nível de pobreza em questão. Mas a política habitacional no Brasil não é feita para resolver déficits, mas para alguém ganhar dinheiro e alguém manter poder.
Sem contar que há muita gente das classes alta e média que têm raiva de pobre contando com apoio público para conseguir um teto. Preferem gastar energia bradando contra isso do que exigindo a investigação sobre os contratos dos programas de moradia existentes entre grandes construtoras e o poder público. Existe até atendimento de pedido para mudar conceito de trabalho escravo e dificultar a libertação de trabalhadores, como já foi denunciado por vários veículos.
Ou exigir a investigação das "imobiliárias urbanas" que se travestem de movimentos sociais, lucrando com a desgraça alheia e não operando como os verdadeiros movimentos por moradia (com decisões tomadas coletivamente em assembleia e sem benefício financeiros de seus líderes), que são a maioria.
O Brasil tem dispendido injustificável tratamento diferenciado (para pior) a uma parcela de sua população que se vê obrigada a morar em casas sem a mínima segurança ou dormir ao relento em comparação a benefícios concedidos para algumas categorias, como as de magistrados e políticos.
O que faz mais sentido? Conceder auxílios para ajudar no aluguel de magistrados ou usar os recursos para reformar ou construir residências para sem-teto? Ou garantir subsidiar aluguéis de locais de qualidade? Soa populista e é claro que o valor não seria suficiente, mas seria uma boa forma de mostrar a prioridade do Estado.
Não que a gente não saiba a prioridade. Mas é sempre bom ouvir a verdade dita com todas as palavras.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.