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"Ideologia de gênero" é insistir na fábula de que o homem é superior

Leonardo Sakamoto

09/05/2018 10h22

Charge: Laerte

A comissão especial destinada a analisar o projeto Escola Sem Partido apresentou, nesta terça (8), relatório favorável à adoção da proposta nas escolas de todo o país. Ainda há um longo caminho para ser transformado em lei e nada garante que, uma vez aprovado, não seja considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

"A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, nem mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo 'gênero' ou 'orientação sexual"', disse, em seu parecer, o deputado federal Flavinho (PSC-SP).

Procurei na Constituição Federal e no restante da legislação brasileira e não encontrei definição do que seja tal ideologia. Já na internet, circulam muitos textos, rasos como um pires, explicando que "ideologia de gênero" é uma tentativa de "destruir o plano de Deus" e fazer com que "homens não sejam homens e mulheres não sejam mulheres". Segundo esses textos, o "aparelho excretor não reproduz", portanto, relações que não envolvam um indivíduo com um pênis e outro com uma vagina contribuem para o declínio moral e numérico da civilização. Há outros pseudocientíficos também, que são ainda piores por tentar fingir ser o que não são.

Por outro lado, há uma vasta bibliografia produzida pela academia, dentro e fora do país, que aponta "ideologia de gênero" como todo e qualquer discurso produzido e disseminado para colocar e manter os homens no topo da hierarquia social.

Ou seja, é o pacote construído e lapidado, ao longo da história, por nós, homens, para forçar e justificar a dominação não apenas sobre as mulheres, mas também contra a população LGBTT – pacote distribuído pela igreja, pela família, pelas escolas, por veículos de comunicação.

É a ideologia que naturaliza a mulher ganhar menos que o homem pela mesma função no trabalho; que relaciona apenas a ela as tarefas domésticas e o cuidado com as crianças e os mais velhos; que a transforma em objeto de prazer para ser violentado dentro da própria casa e alvo de ejaculação em trens e ônibus; que chama o assédio sexual e desrespeito de "simples elogio" ou "brincadeira"; que declara seu corpo como propriedade masculina, tentando proibir até abortos em caso de estupro; que faz com que elas se sintam culpadas pela violência que sistematicamente sofrem; que explica por "mérito" e não por "histórica desigualdade" o fato de haver muito mais homens do que mulheres nos parlamentos, governos, tribunais e conselhos de empresas; que interrompe a fala da mulher, tenta explicar como se ela fosse incapaz de compreender o mundo e faz com que acredite estar ficando louca; que torne o disparate tão normal a ponto de nunca ser preciso pedir desculpas. Pelo contrário, esperamos delas a desculpa pela nossa agressão.

Considerando, portanto, que esse é um termo em disputa, acho que pode ser uma boa ideia professores, alunos e as escolas brasileiras se engajarem no combate à "ideologia de gênero". Talvez seja a chance de corrigir um crime histórico cometido por um gênero sobre os outros…

Em tempo: Educar por educar, passando apenas dados e técnicas, sem conscientizar o futuro trabalhador e o cidadão do papel que ele pode vir a desempenhar na sociedade, sem considerar a realidade à sua volta, sem ajudá-lo a construir um senso crítico e questionador sobre o poder, seja ele vindo de tradições, corporações, religiões ou governos, é o mesmo que mostrar a uma engrenagem o seu lugar na máquina. A um tijolo, em qual parte do muro deve permanecer. Em outras palavras, educar pode significar libertar ou enquadrar. Pode ajudar às pessoas a descobrirem como quebrar suas próprias correntes ou ser o pior cativeiro possível, fazendo com que vítimas se tornem cães de guarda de seus agressores.

Que tipo de educação estamos oferecendo? Que tipo de educação precisamos ter? Que tipo de educação um movimento como o "Escola Sem Partido", e tantas outras propostas fundamentalistas, quer implantar?

 

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto