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Ao premiar morte com flores, governador de SP faz um desserviço à polícia

Leonardo Sakamoto

14/05/2018 07h24

Governador de São Paulo, Márcio França (PSB) entrega flores à cabo Katia Sastre. Foto: Gilberto Marques/Divulgação

Uma coisa é uma policial militar reagir a um assalto e matar um ladrão na porta de uma escola enquanto esperava uma celebração do Dia das Mães com sua filha. Apenas um inquérito poderá apontar se a ação colocou em risco outras famílias reunidas, mas especialistas em segurança pública têm apontado que ela agiu em legítima defesa, ou seja, dentro da lei.

Outra é uma parte da população usar as redes sociais para demonstrar seus orgasmos de prazer com a morte de um outro ser humano, aproveitando para clamar que todo cidadão comum receba uma arma para reagir da mesma forma. O que é, ao mesmo tempo, dois atestados. Um, de ignorância, por desconsiderar que policiais, ao contrário da massa, recebem longo treinamento para reagir a situações-limite. E o segundo, de sociopatia grave, ao não ver problema em festejar a morte de outra pessoa.

Mas o pior é o governador do Estado de São Paulo aproveitar que o tema estava quente nas redes sociais para tentar surfá-lo, fazendo pré-campanha eleitoral. Márcio França (PSB) organizou uma cerimônia, neste domingo (13), para enaltecer o ato da policial, indo na contramão da própria Polícia Militar – que tem tentado reduzir a letalidade da corporação, atuado para desarmar a população e alertado para que civis não reajam a assaltos.

Ele poderia ter respondido apenas a eventuais questionamentos da imprensa ou soltado uma nota pública, dizendo que a policial agiu conforme a lei e que o governo garantirá toda assistência a ela. Preferiu aparecer ao seu lado para gerar imagens que podem ser compartilhadas pela imprensa, por sua equipe de comunicação nas redes sociais ou usadas em sua campanha à reeleição.

Sob qualquer ótica possível, isso é irresponsabilidade. Passa a mensagem de que tal ato não é uma exceção, mas algo a ser celebrado e repetido por qualquer indivíduo. A população recebe isso como anuência do poder público para a possibilidade de resolver as coisas com as próprias mãos.

Melhor faria se entregasse aumentos de salários, melhores condições de trabalho, mais treinamento e formação especializados e bons equipamentos aos policiais – que são obrigados a morrer em nome de uma sociedade que nem sempre reconhece os serviços de uma imensa maioria de servidores honestos.

Uma coisa são as hordas em redes sociais celebrando que uma pessoa foi abatida. Li gente pedindo sangue, literalmente. E, apesar de não ser um caso de "justiça com as próprias mãos", mas sim de ação – ao que tudo indica – legítima da força policial, há inconsequentes aproveitando para exigir que julgamentos sumários sejam feitos para acabar com a criminalidade. Gente dizendo que chega de julgamentos longos e com chances dos canalhas se safarem ou de "alimentar bandido" em casas de detenção. Malucos pedindo para limpar a urbe com sangue para os "homens de bem".

Outra coisa é um governador surfar esse tipo de comoção negativa sem se preocupar com as repercussões de seus atos. Abrimos mão de resolver as coisas por nós mesmos para impedir que nos devoremos, entregando ao Estado o uso da força para resolver os problemas. Parece que um dos representantes do Estado, agora, quer nos devolver de volta a responsabilidade.

Boa parte da população, apavorada pelo discurso do medo, mais do que pela violência em si, tem adotado a triste opção de ver o Estado de direito com desconfiança. Ações como essa não melhoram o quadro, muito pelo contrário. Estimulam o cada um por si.

E não importa que ele diga que incentiva "as pessoas mais jovens a não se aventurem com arma na mão, porque estão sujeitas a morrer". Isso é equivalente a uma propaganda de cigarro com fumantes fazendo coisas incríveis que, no finalzinho, afirma – de forma envergonhada: "tabaco causa câncer".

Espero que isso termine aqui, apenas como um ato infeliz. Pois se pessoas comuns ou mesmo policiais sentirem-se à vontade para repetir a ação e a situação levar a uma tragédia maior, França pode não conquistas uns votos a mais, mas certamente terá sua parcela de responsabilidade.

 

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto