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"O Brasil voltou, 20 anos em 2." Exceto pela vírgula, o governo tem razão

Leonardo Sakamoto

14/05/2018 20h22

Foto: Leonardo Benassatto/Reuters

"O Brasil voltou, 20 anos em 2." É dessa forma que o Palácio do Planalto está chamando o evento para celebrar os dois anos de governo Michel Temer – que será realizado nesta terça (15).

Se você teve a sensação de que há uma vírgula a mais nessa frase, fique tranquilo. O problema não é de déficit gramatical, mas de senso aguçado da realidade. Já disse isso mais de uma vez por aqui: as políticas e discursos do governo nos empurraram para duas, três décadas atrás.

Quem acusa Temer, agora, de surpreender a todos com uma revelação é por que não prestou a devida atenção nele.

O ocupante da Presidência da República aprovou a PEC do Teto dos Gastos, congelando os gastos públicos em áreas como educação e saúde pelas próximas duas décadas. Com isso, conquistas garantidas pela Constituição de 1988 podem ser perdidas. Na época da aprovação, ele afirmou que essa era a medida legislativa mais séria e responsável desde a Constituição Federal de 1988. Ao mesmo tempo, conseguiu passar a Lei da Terceirização Ampla e a Reforma Trabalhista, mudanças que contribuem para reduzir a proteção à saúde e à segurança do trabalhador, voltando atrás em avanços obtidos ao longo das décadas de 80 e 90.

Todas essas políticas provocaram um chamamento a uma greve geral, ocorrida no dia 28 de abril do ano passado. E muitos vão concordar comigo que greve geral é algo muito com a cara dos anos 80 e 90. As pautas são diferentes das de março de 1989, maio de 1991 e junho de 1996, mas o clima de descontentamento geral com a economia, a política e o futuro do país eram parecidos.

Mas não só. Temer já disse que conversou com os "soviéticos" em viagem oficial à Rússia, em junho do ano passado. "Estive agora recentemente em Moscou, na Rússia, e depois na Noruega, e verifiquei o interesse extraordinário dos empreendimentos soviéticos, o deputado Perondi lá esteve em nossa comitiva, e nós pudemos verificar o interesse extraordinário de empresários soviéticos e noruegueses, no nosso país, pelo que está acontecendo no país."

Como todos sabem, menos ele e algumas pessoas com prisão perpétua na Sibéria, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas deixou de existir em 1991. Poder-se-ia afirmar que foi uma gafe isolada, como uma mesóclise lançada sem reflexão. Mas o próprio Palácio do Planalto havia divulgado, em sua agenda, uma visita oficial à "República Socialista Federativa Soviética da Rússia".

E durante uma cerimônia de entrega de ambulâncias no Rio Grande do Sul, Temer – referindo-se ao ministro da Saúde – afirmou, janeiro do ano passado: "Em pouquíssimo tempo, ele anunciou a economia de 800 milhões de cruzeiros, que significam novas UPAs, novas UBSs e também novas ambulâncias." O cruzeiro, moeda corrente em vários momentos da história do país, vigorou entre 1970 e 1986.

A impressão é que os responsáveis pela comunicação da Presidência da República estão presos lá dentro do Planalto, vendo tudo, mas sem poder falar nada. Daí, mandaram mensagens para nós, aqui, do lado de fora. Pequenas dicas, na forma de garrafas jogadas no mar virtual, para percebermos que o governo está nos empurrando para trás.

Como se fosse preciso.

Atualização: Após a repercussão negativa, o Palácio do Planalto mudou a cerimônia para "Maio/2016 – Maio/2018: O Brasil Voltou" ainda na noite desta segunda.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto