Após breve comoção pelas mortes do fogo, SP ignora os que morrem no frio
Leonardo Sakamoto
21/05/2018 14h17
Moradores de rua tentam de proteger do frio com papelões e cobertores no Centro de São Paulo. Foto: Martha Alves/Folhapress
A comoção pelo incêndio e desabamento do prédio ocupado por sem-teto no Largo do Paissandu passou. Ao mesmo tempo, o frio deu as caras e, em uma triste ironia, as famílias que acampam ao lado dos escombros que já foram seu lar se viram como podem para se manterem aquecidas.
São Paulo teve a madrugada mais gelada do ano nesta segunda (21), com 8° Celsius de temperatura média. Dois homens em situação de rua foram encontrados mortos – um na Zona Oeste, outro no Centro. A causa do óbito é desconhecida, mas as vítimas estavam sem agasalho ou cobertor e não apresentavam sinais de violência.
As pessoas não morrem de frio na capital paulista, a bem da verdade. Nem por causa do fogo. Morrem de especulação imobiliária e da falta de políticas públicas de moradia e de atendimento assistencial.
Entregar imóveis vazios aos sem-teto pode não resolver por completo o problema de moradia da metrópole. Mas certamente ajudaria a amenizá-lo. O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se prédios trancados por portas de tijolos e terrenos vazios pudessem ser desapropriados e destinados a quem precisa – gratuitamente ou a juros abaixo do mercado, dependendo do nível de pobreza.
"Tá com dó? Leva para casa!" Gosto dessa frase, usada de forma abundante na internet quando alguém trata de reforma urbana. Ela ajuda a reconhecer facilmente se o interlocutor conta um déficit patológico de empatia. O que pode ser bastante útil para, uma vez identificado que o ser é um iniciante na arte da vida em coletividade, redobrar o nível de paciência no diálogo com ele.
Não é levar o povo para a casa. Mas fazer com que o poder público – federal, estadual e municipal – cumpra sua função de garantir o mínimo de dignidade a quem não pode pagar por uma, como previsto no artigo sexto da Constituição Federal.
Para muitos, um morto após uma fria madrugada é apenas um estorvo a menos. Uma ajuda à faxina social que já ocorre, a conta-gotas, pelas mãos do Estado ou de agentes privados. Faxina que vem para acalmar "cidadãos de bem" que não gostam de pessoas mal-cobertas por mantas velhas ferindo seu senso estético, têm horror a qualquer crítica à intocabilidade da propriedade privada e querem tomar um café quentinho em seu restaurante sem se lembrar que, por nossa inação e nossas opiniões mesquinhas, somos mais responsáveis pelo que acontece do lado de fora do que o clima.
Não bastasse xingar e atacar sem-teto e pessoas em situação de rua, que vira e mexe são vítimas de pauladas, pedradas e fogo enquanto dormem sob o céu da cidade, há uma parte dos paulistanos que sente raiva por quem ajuda tornar a vida dessas pessoas menos dolorida. E deseja que tenham o mesmo fim.
O padre Júlio Lancellotti, vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo, tem sido vítima de ameaças de morte por conta de seu trabalho de mais de três décadas com esse grupo. Isso é um atestado de nossa falência como sociedade.
Quando o frio exterior é muito forte, o hipotálamo no nosso cérebro perde a capacidade de manter nossa temperatura – que, normalmente, permanece na casa dos 37° Celsius. As reações químicas relacionadas à manutenção da vida precisam de calor. Sem ele, músculos vão parando, a respiração e a circulação sanguínea diminuem, a sensibilidade some com o freio do sistema nervoso. A consciência vai se dissolvendo. Tudo até o coração parar de bater.
Mas para muitos paulistanos parece que o coração parou de bater e eles nem se deram conta.
Post atualizado às 17h, do dia 21/05/2018, para inclusão de informação sobre o segundo óbito.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.