Turbulência na Petrobras lembra que o Brasil não é uma planilha de Excel
Leonardo Sakamoto
01/06/2018 20h20
Estabeleceu-se uma batalha de discursos por conta do pedido de demissão, nesta sexta (1), do presidente da Petrobras Pedro Parente. Ele não concordava em mudar a política de preços de combustíveis da companhia, que tem acompanhado variações do dólar e do preço do barril de petróleo no exterior, frente à greve dos caminhoneiros. Acatando a exigência de Parente, o governo acabou jogando nas costas da população parte do custo do desconto de R$ 0,46 por litro de diesel.
Parte dos que travam essa discussão do lado do poder econômico tentam mostrar a "sensatez do mercado" em oposição "à loucura, ao populismo e aos interesses escusos" de quem o critica. Esse tipo de maniqueísmo econômico é muito bom para contos de fada, mas não cabe na vida real.
Nossa ideologia vai conosco para toda parte. Adotamos ou escolhemos formas diferentes de filtrar e interpretar a realidade à nossa volta fazendo com os acontecimentos signifiquem coisas diferentes para você, para mim e para os outros.
Tudo tem base ideológica. Somos guiados por conjuntos de ideias e adotamos diferentes formas de interpretar os fatos do mundo. O importante é saber se a nossa base é includente ou excludente. Ou seja: se queremos que mais seres humanos aproveitem da mesma dignidade que desejamos para nós mesmos. Ou se defendemos que eles devem esperar mais um pouco para que a economia cresça e, só depois disso, eles retirem seu pedaço.
Ao mesmo tempo, o "bom senso" não é neutro. Pelo contrário, é construído. Uma ação ou um comportamento vistos como naturais ou lógicos são, na verdade, a resultante de uma série de disputas simbólicas no seio de uma sociedade. Com o tempo, a lembrança dessas batalhas se esvai ficando apenas o seu resultado: uma ideia largamente aceita e pouco questionada.
O "bom senso" convencionou que a "técnica" é neutra. O problema é que ela nasceu para ser aplicada. E quando isso ocorre, é usada por alguém com uma ideologia. Não raro responde-se que "você não pode brigar com números" para justificar a opção por uma saída que atende a uma determinada ideologia. Como se a matemática, ela própria, não fosse usada para qualquer fim.
O bom senso já justificou queimar hereges na fogueira, a escravidão de índios e negros, o impedimento ao voto feminino e a proibição de casais do mesmo sexo de terem os mesmos direitos dos héteros. Já fez estragos em governos que se diziam de direita ou esquerda. Até que, com muito sacrifício, alguns tipos de "bom senso" passaram a serem vistos como preconceito ou, mais objetivamente, como a forma de um grupo dominante impor seus ideais ao resto da população.
Aliás, não há discurso mais ideológico do que aquele que diz que não possui ideologia. Ao tentar naturalizar relações sociais, culturais e econômicas como se fossem "naturais" ou "lógicas" ele está construindo uma complexa rede de estruturas.
O neoliberalismo é craque em se afirmar neutro quando, na verdade, não é. Em dizer que é lógico e natural cortar direitos de trabalhadores, impor limites para o crescimento de gastos públicos em educação e saúde, implantar uma idade mínima alta para a aposentadoria.
Defender que uma empresa de capital misto, que monopoliza o refino de combustível, deve seguir apenas a "lógica inquestionável" do mercado ao invés de ouvir que ela precisa equilibrar o pagamento de dividendos às demandas sociais e econômicas da população, que é sua acionista indireta, é outro exemplo. Há muita coisa possível entre o controle artificial do preço da gasolina imposto pelo governo Dilma e um repasse quase que diário do preço ao consumidor do governo Temer.
Não deixa de ser curioso que muitos digam que a técnica adotada por Pedro Parente não é ideológica, mas apenas lógica. Essas pessoas não querem o mal da sociedade, pelo contrário, defendem apenas outro ponto de vista para melhora-la. Mas esse é o ponto: essa técnica e suas justificativas são apenas um ponto de vista, com seus prós e contras, que tem o seu valor tanto quanto aquele que o nega.
A classe política é responsável pela situação a que chegamos, com toda a corrupção, incompetência e ignorância que minou a credibilidade de instituições. Compra da Reeleicão, Mensalões, Trensalões, Lavas-Jato e a maioria dos escândalos, que permanece longe dos olhos do grande público.
Mas, mesmo assim, negar a política é atacar mortalmente a democracia. São os ambientes democráticos os responsáveis por garantir que diferenças sejam reconhecidas e minorias em direitos sejam ouvidas, tornando possível a vida em sociedade e não a violência como saída. Em outras palavras, sem as instituições políticas, a resolução dos conflitos seria na base da porrada, com o mais forte suprimindo o mais fraco. Como nossa política é, por vezes, imperfeita e corrompida, os conflitos já são resolvidos dessa forma, com pobres se lascando em nome dos mais ricos.
É um ato opressor curvar a política à técnica, afirmando que essa é a opção natural, quando sabemos que a técnica é política. Por vezes, tecnocratas não aceitam negociação, dizendo que estão sofrendo intervenção de interesses políticos. Quando suas próprias decisões são, na verdade, ações políticas que estão intervindo no bem-estar da sociedade.
Neste momento, mais do que em qualquer outro, precisamos menos de bons gestores e mais de bons políticos. De pessoas capazes de articular as diferentes demandas sociais e promover o diálogo entre setores e classes a fim de encontrarmos soluções que não desagradem a todos. É apenas em um ambiente democrático que a própria democracia consegue mudar seus rumos e corrigir-se.
Pessoas que não enxerguem pessoas como números e suas demandas por qualidade de vida como erros de fórmula em uma planilha de Excel.
Porque, ao final, a luta pela dignidade humana é uma conta que não fecha. Mas faz sentido mesmo assim.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.