Há uma matança de jovens negros. Mas o que indigna é o preço da gasolina
Leonardo Sakamoto
05/06/2018 11h42
Cinco jovens foram mortos por policiais no carro em que estavam em Costa Barros, subúrbio do Rio, em novembro de 2015. Voltavam de uma lanchonete e levaram 111 tiros. Foto: Christophe Simon / AFP
Entre 2006 e 2016, homicídios de negros aumentaram 23,1% e, do restante da população, reduziram 6,8%. Em 2016, a taxa de homicídios de negros foi de 40,2 mortes para cada 100 mil habitantes, enquanto os demais grupos registraram 16 mortes para cada 100 mil.
Em outras palavras, 71,5% dos assassinados foram negros. No mesmo ano, de acordo com o IBGE, a população negra (pretos e pardos) somava 54,9% dos brasileiros.
As informações são do Atlas da Violência 2018, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sobre dados do Ministério da Saúde.
Apesar dos homens negros serem as maiores vítimas de homicídio, a mulher negra segue o mesmo padrão de vida descartável pela sociedade. No mesmo período de dez anos, enquanto a taxa de homicídio delas cresceu 15,4%, a das mulheres não-negras caiu 8%.
De acordo com o Atlas, homicídios respondem por 56,5% da causa de óbito de homens entre 15 a 19 anos. Nesses dez anos, 324.967 jovens foram assassinados no Brasil – quase uma Islândia inteira. Some-se esse dado ao da cor da pele para verificar que jovens negros são as principais vítimas de abate no país.
No último dia 17, um estudo da diretora do Fórum Brasileiro de Segurança, Samira Bueno, apontou que há mais jovens negros mortos por policiais do que por homicídios dolosos no Estado de São Paulo. De 2014 a 2016, 16% dos mortos por policiais tinham menos de 17 anos – o que representa mais que o dobro daqueles que eram vítimas de homicídios em geral (8%). Além disso, 67% das vítimas fatais de ações policiais eram negras contra 46% do total de homicídios.
Em julho do ano passado, reportagem do UOL apontou que nove entre cada dez pessoas mortas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro eram negras. O dado foi obtido através da Lei de Acesso à Informação. Organizadas com base em boletins de ocorrência da Polícia Civil, as informações mostraram que, ao menos, 1227 pessoas foram mortas pela força policial entre janeiro de 2016 e março de 2017. Metade delas tinham até 29 anos. A maioria na periferia.
Pode ser espantoso para quem vive em um bairro nobre, protegido por câmeras, muros altos e um batalhão de seguranças que o principal alvo da violência no Brasil não seja homens e mulheres brancos e ricos. Mas o Atlas da Violência não traz novidade para quem sente na pele um genocídio em curso.
Muitas dessas mortes ocorrem na forma de pacotes, em chacinas, nas periferias das grandes cidades brasileiras, seja pelas mãos do tráfico, de milícias ou de integrantes da própria polícia. Não raro, permanecem sem solução – a taxa de sucesso de investigação de homicídios na periferia é baixa. Prende-se em flagrante na maioria das vezes. Não é que a nossa elite política não consegue apontar e condenar culpados por todas elas como deveria, ela parece não se incomodar.
E quem está enclausurado nas regiões encasteladas das grandes cidades, preocupa-se com as mortes daqueles que reconhece como "cidadãos", ou seja, dos que reconhece como seus semelhantes. Não de negros e negras pobres. Pelo contrário, não raro apoiam formas de "limpeza social" do que chamam de "pessoal perigoso". E que ameaçam, com sua existência, os pagadores de impostos. Muitos dos autointitulados "cidadãos de bem" desejam que a faxina social seja rápida, para garantir tranquilidade, e não faça muito barulho. Porque, pasmem, ele tem horror a cenas de violência.
Nas redes sociais, essas pessoas são mortas uma segunda vez através de postagens preconceituosas e violentas que dizem que "se levaram bala é porque estavam em lugar que gente honesta não frequenta". Seja pelas mãos do Estado ou de criminosos.
Como já disse aqui, essa diferença nas taxas de homicídios de negros seria razão mais do que suficiente para ocuparmos as ruas das grandes cidades em protesto. E, de forma racional, pedindo ações estruturais que melhorem a qualidade de vida, garantam justiça social, possibilitem empregos e educação de qualidade aos mais jovens, capacitem e remunerem decentemente as forças policiais, invista em inteligência das forças de segurança, descriminalizem as drogas, entre outras medidas preventivas, que podem garantir um contexto mais seguro. E não adotando saídas fáceis e bizarras, como colocar crianças nas cadeias. E entregar cadeias à iniciativa privada. Mas morte de jovens negros e pobres não valem o arranhão deixado em um panela batida.
Boa parte dos policiais envolvidos nesse genocídio são da mesma classe social dos moradores e traficantes que também tombam. Ou seja, é pobre (mal remunerado, mal treinado, maltratado) matando pobre enquanto quem manda ou lucra de verdade com o tráfico de drogas e com a manutenção da situação como está encontra-se arrotando comida chique em outro lugar.
Já perguntei isso aqui, mas não custa repetir: Ninguém mata jovens brancos ricos impunemente em Ipanema ou em Perdizes. Por que isso ocorre com jovens negros pobres nos Extremos da Zona Norte do Rio ou nos Extremos da Zona Leste de São Paulo?
Porque lá a vida vale menos.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.