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"Abusivo Tudo Isso": Vale trocar a saúde dos filhos por brindes em lanches?

Leonardo Sakamoto

11/07/2018 17h03

Por Livia Cattaruzzi*, especial para o blog

A oferta de produtos alimentícios atrelada a brinquedos colecionáveis direcionada a crianças é prática comum e habitual, adotada repetidamente por diversas redes de fast food. Os anúncios desses combos estão em todos os lugares: televisão, rádio, internet, pontos de ônibus, outdoors e locais de venda.

Em vez de refletir sobre essa prática, considerada ilegal pela legislação brasileira, nos acostumamos a ela e nos limitamos a responsabilizar mães e pais, exigindo que façam um trabalho melhor e digam "não" às crianças. Ignoramos que a oferta desses combos de lanche com brinquedos causa impactos sociais negativos que são sentidos por toda a sociedade em favor de poucos que se beneficiam dela – as próprias marcas.

Visando cativar diretamente as crianças, os brinquedos ofertados nesses combos costumam representar personagens infantis de animação, filme ou jogo eletrônico do momento. Além disso, são itens exclusivos, temporários e colecionáveis, o que faz com que as crianças sejam incentivadas a consumir uma grande quantidade de combos em um curto espaço de tempo. É natural que a criança deseje completar a coleção.

Não se pode ignorar que a fome para adquirir todos os brinquedos transforma a criança em uma verdadeira promotora de venda da marca. Sabe-se que crianças podem influenciar em até 80% as decisões de consumo de uma casa, e são o meio encontrado pelos anunciantes e publicitários para apresentar as marcas aos adultos dentro do ambiente familiar.

Pesquisa realizada por um canal de TV especializado em programação infantil aponta que 27% das crianças entrevistadas utilizavam o método de insistir com suas mães e pais para que comprassem o produto desejado, até que acabassem cedendo. 56% das crianças também afirmaram que os itens mais fáceis de pedir e conseguir eram comidas, lanches e doces.

A Organização das Nações Unidas, em 2016, elaborou declaração com um alerta global sobre o impacto da publicidade infantil, que inclui a construção de hábitos consumistas e endividamento das famílias, em razão da compra de itens desnecessários, que estão além do orçamento, para suprir desejos dos filhos.

Diante do desejo ou das insistências, as qualidades nutricionais dos produtos alimentícios com os quais tais brinquedos colecionáveis são vendidos acabam sendo esquecidas. É preciso, então, lembrar que os alimentos comercializados em combos infantis pelas redes de fast food têm altos teores de gordura, sódio e açúcar, cujo consumo corriqueiro é extremamente prejudicial à saúde das crianças.

O Brasil vive, hoje, um momento de transição do padrão alimentar e nutricional, com cada vez mais obesidade e sobrepeso infantil. Segundo dados do IBGE de 2010, uma em cada três crianças de 5 a 9 anos está acima do peso no país, e 15% estão obesas. A obesidade infantil é causada por uma série de fatores, incluindo as estratégias de comunicação mercadológica direcionadas a crianças, abusivas e ilegais pela legislação brasileira vigente.

A prática também configura venda casada, considerada ilegal pelo Código de Defesa do Consumidor. Ainda que os brinquedos possam ser adquiridos separadamente, o valor unitário é claramente alto e abusivo quando comparado ao preço do combo completo, que inclui os produtos alimentícios mais o suposto brinde. Com isso, as redes de fast food transmitem ao consumidor a falsa sensação de que ele tem autonomia para adquirir o brinquedo isoladamente e o induz a acreditar que a oferta do combo lhe é vantajosa por "ganhar" o brinquedo, o que não é verdade. O desconto é pago com saúde.

Esse tipo de estratégia comercial – associação entre produtos alimentícios não saudáveis, personagens do imaginário infantil e brinquedos colecionáveis – é pensada e criada por profissionais de marketing para atrair a atenção das crianças, fazendo-as desejar e consumir os produtos anunciados de forma inconsciente e indiscriminada. No Reino Unido, o orçamento de marketing das empresas de junk food é 27 vezes maior que os gastos com educação alimentar naquele país. Imagina essa diferença no Brasil! Diante de tantos artifícios, o mal à saúde que a ingestão regular desses combos pode causar às crianças é mascarado.

Estudos de neuromarketing apontam que a associação de marca a uma experiência de entretenimento é muito mais efetiva diante do excesso de estímulos publicitários dos dias atuais. Com o público infantil, a estratégia cai como uma luva. A criança gosta de colecionar os mais variados produtos e sente-se atraída por opções que proporcionam ganhos rápidos, exatamente como o brinquedo atrelado à compra de um produto – imediato e concreto.

O problema é que o direcionamento de publicidade a crianças não somente é abusivo e ilegal, condenado por diversas decisões judiciais, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, como também pode ser encarado como uma prática desleal, antiética e moralmente reprovável.

Isso porque a criança é pessoa em especial fase de desenvolvimento físico, cognitivo, social e psíquico, de modo que ainda não tem o discernimento necessário para distinguir ficção de realidade ou compreender o caráter persuasivo da publicidade, nem tem plenas capacidades para se defender da forte pressão exercida pela publicidade, sendo, por isso, facilmente influenciada pela mensagem comercial.

Não à toa, a nossa Constituição Federal prevê que a proteção dos direitos da criança deve ser compartilhada, com absoluta prioridade, entre Estado, família e sociedade, o que inclui as empresas, de modo que tais direitos devem ser sobrepostos aos interesses unicamente comerciais que norteiam a publicidade dirigida ao público infantil.

Só no primeiro semestre de 2018, a rede de lanchonetes McDonald's anunciou sete combos de lanche com brinquedos do McLanche Feliz, com uma média de dez "brindes" por campanha. Colocar-se contra essa prática é estar ao lado da infância. Significa apoiar as famílias e garantir que os adultos tenham autonomia para educar e orientar seus filhos sem a pressão bilionária da indústria do marketing infantil. Pensando nisso, o Instituto Alana lançou, nesta terça (10), uma campanha convidando a denunciar o McDonald's à Secretaria Nacional do Consumidor por publicidade direcionada a crianças. É hora de dizer: #AbusivoTudoIsso.

(*) Livia Cattaruzzi é advogada do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana. 

Imagem de campanha do Instituto Alana contra publicidade direcionada `ås crianças

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto