Só acredita na intervenção no Rio quem vive blindado e encastelado
Leonardo Sakamoto
16/07/2018 17h12
Uniforme escolar de Marcos Vinícius manchado com seu sangue. Ele foi morto, ao ir para a escola, em uma operação com a presença da polícia e do Exército. Foto: Mauro Pimentel/AFP
O número de chacinas subiu 86% desde que foi decretada a intervenção federal na área de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro.
Foram 28 casos de "mortes múltiplas", com três ou mais homicídios violentos, totalizando 119 óbitos, entre fevereiro e julho – número superior aos 15 casos, com 50 mortos, no mesmo período do ano passado. Os dados são do Observatório da Intervenção, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, e estão em reportagem do UOL desta segunda (16).
Poucos esperavam que as Forças Armadas, colocadas à frente da intervenção por Michel Temer, apresentassem resultados concretos até agora. Primeiro, por que o problema da violência no Rio é estrutural. Segundo, por que elas foram empurradas para esse abacaxi pelo Palácio do Planalto sem planejamento ou recursos. Terceiro, por que a intervenção, do jeito que foi pensada, é menos uma ação para reduzir a violência – que atinge principalmente a população mais pobre – e mais uma grande peça de marketing com intenções eleitorais de um governo capenga e seu aliado estadual.
Mas, cinco meses depois, a intervenção vem falhando até em entregar o pacote mínimo da "sensação de segurança" que havia prometido.
Logo após ela ser decretada, o escolhido por Temer para a função, general Walter Braga Netto, afirmou que seria tomada uma série de providências para que a população percebesse a "sensação de segurança". Medidas, como o registro fotográfico obrigatório de moradores pobres que desejassem sair de comunidades pobres, indicavam que o naco da cidade do qual falava o general era a sua parte "cartão postal".
Ou nem isso. Pois a execução de Marielle Franco, uma vereadora negra, representante de minorias, nascida em uma comunidade pobre, e a de Anderson Gomes, seu motorista, ocorridas em uma região central e movimentada da capital fluminense, debaixo das barbas da intervenção, dissipou as dúvidas sobre a capacidade do poder público fazer com que a população, em geral, tivesse "sensação de segurança".
Pelo contrário, a farda tem provocado reação contrária em alguns lugares.
Em junho, Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, foi morto quando ia para a escola, no Complexo da Maré, durante uma operação da Polícia Civil com o apoio do Exército. Outras seis pessoas também morreram nessa operação. E um helicóptero dava suporte, atirando do céu na comunidade, como em um videogame.
Em março, moradores da Rocinha apontaram que agentes de segurança atiraram indiscriminadamente contra quem saía de um baile funk. Um pai reclamou que seu filho de 19 anos foi morto com uma bala nas costas apenas por estar na festa.
Na última pesquisa Datafolha sobre o tema, divulgada em março, apesar da maioria da população apoiar a intervenção (76%), ela ainda não havia sentido diferença em sua vida cotidiana (71%). Imagine agora, quatro meses e alguns Marcos Vinícius depois.
O combate à livre circulação de armas ilegais também apresenta problemas. De acordo com o levantamento divulgado hoje, a apreensão de armas de grosso calibre caiu 36,5% durante a intervenção, de 145 para 92.
Alegando questões de segurança, a transparência tem sido reduzida. Como garantir que o serviço vem sendo feito se é difícil monitora-lo? Não se sabe o alcance das ações de inteligência e de combate à corrupção. Por enquanto, apenas a contagem de corpos segue totalmente pública por que surge na rua, todos os dias.
Corre o risco de, ao final, as Forças Armadas – instituição que conta com prestígio junto a uma parcela considerável da população – sair chamuscada da intervenção. Pois, ao assumir o comando de uma estrutura e de uma política falidas, elas se tornaram vetores da violência.
Diante disso, vale lembrar uma das declarações antológicas da intervenção, dada pelo ministro da Justiça, Torquato Jardim. "Tem 1,1 milhão de cariocas morando em zonas de favelas, de perigo. Desse 1,1 milhão, como saber quem é do seu time e quem é contra? Você vê uma criança bonitinha, de 12 anos de idade, entrando em uma escola pública, não sabe o que ela vai fazer depois da escola."
Quando a sociedade perceber que o poder público não é "do seu time", talvez as coisas mudem.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.