"Do Lula, você não fala, né?" - Por que tudo se resume a Lula para alguns?
Leonardo Sakamoto
18/07/2018 20h39
Uma das coisas mais angustiantes e deprimentes no debate público é ver que o naco da sociedade contaminado por uma cepa virulenta de antipetismo – que acha que a revolução comunista está na próxima esquina e acredita que o Foro de São Paulo plantou uma escuta em todas as tigelas de granola do arroio Chuí ao Monte Caburaí visando a iniciar a revolução pelo domínio dos cereais – reage diante de qualquer texto que denuncie um problema com um "Do Lula, você não fala, né?".
O comportamento pode ser constatado facilmente nas caixas de comentários dos principais portais brasileiros.
A temática? Qualquer uma: agrotóxicos, trabalho escravo, impostos, contaminação das praias, desemprego, tempo seco, greve dos caminhoneiros, Trump, Google, Rick and Morty, aumento das passagens aéreas, falta de capturas no Pokémon Go, quedas dramatizadas do camisa 10 da seleção, garotos tailandeses presos em uma caverna, a loucura de pedir picanha bem passada… não importa. Essas pessoas dão um jeito de enfiar o Lula na história e colocá-lo como responsável.
Não que ele não seja o culpado de muita coisa. Mas dessa loucura, não.
Tenho dificuldades para entender esse tipo de perversão que mantém a figura do ex-presidente, preso em Curitiba, no centro de um dispositivo que ativa o prazer quando uma vontade descontrolada de sentir repulsa é atendida. Um masoquismo de viver em uma espiral contínua de nojo-desejo-nojo-desejo-nojo-desejo, como uma pessoa viciada em cheirar a própria meia usada. Esse tipo de ser, quando escorrega e cai no futebol e, com isso, tem uma contusão, deve culpar o Lula. E, ao fazer isso, goza.
Isso é desesperador por que os problemas do país seguem em nossa frente, para serem reconhecidos, debatidos e resolvidos. Ao apontar o buraco simplesmente para Lula, uma multidão mantém-se entorpecida, fazendo questão de ignorar os fatores envolvidos em diferentes problemas políticos, econômicos e sociais.
Mantendo-se em primeiro lugar nas intenções de voto à Presidência da República mesmo preso há mais de 100 dias, poucos duvidam que ele ganharia a eleição se for solto e estiver legalmente apto a competir – o que é muito difícil ocorrer. Até porque teriam feito muito barulho até aqui por nada.
Diante do medo dessa sombra, tento compreender o desconforto da cepa antipetista acima citada. Agora, transformar tudo em "é culpa do Lula" é uma doideira além da compreensão, que funciona como um "Vai lá no Posto Ipiranga" da política, tornando-o depositório único dos problemas nacionais.
Lula é a principal liderança popular brasileira. E, com isso, transforma-se em fortaleza para onde a esquerda se refugia sempre que é atacada. Colateralmente, torna-se também a sua masmorra, onde a esquerda fica presa e de onde não consegue fugir.
No limite extremo, há quem se sinta tão protegido por sua imagem que também renega a racionalidade, atuando como membro de seita religiosa, pronto para vincular qualquer coisa boa à intervenção de Lula. É a situação do "Vai lá no Posto Ipiranga" ao contrário. Ou seja, o ex-presidente como depositório único das esperanças nacionais.
(Particularmente, não acredito em heróis. Ou melhor, acredito, mas eles são espalhafatosamente pobres e anônimos para se fazerem notar.)
Lula é responsável por muita coisa positiva que o antipetismo patológico é incapaz de absorver e por muita coisa negativa que a incompleta autocrítica petista não depurou.
Mas a vinculação de tudo de ruim ou de bom a ele é a consequência de um Brasil incapaz de tomar as rédeas de sua própria insatisfação. Pois é mais fácil culpar alguém. Sempre.
Por fim, para o pessoal que transforma Lula em alfa e ômega, no céu e no inferno, não importa que você escreva dezenas de textos criticando e reconhecendo ações e políticas tomadas por ele. Tudo se resume ao presente, ou seja, a este texto, e como você nele se comporta. Se falou da situação do emprego e não atacou Lula, você é um petista sujo. Se falou da situação do emprego e não elogiou Lula, você é um antipetista sujo. Se ponderou algo, é um isentão que merece ser queimado em praça pública.
– Do Lula, você não fala, né?
– O país em que você vive não se resume a Lula. Que tal conversarmos sobre esse país?
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.