Censura nas universidades: Não esperaram nem o corpo da democracia esfriar
Leonardo Sakamoto
26/10/2018 05h44
A Justiça Eleitoral obrigou a Universidade Federal Fluminense a retirar uma faixa que dizia "UFF Antifascista" da fachada de sua Faculdade de Direito, sob pena de prisão de seu diretor.
A juíza Maria Aparecida da Costa Bastos entendeu que ela representava propaganda negativa para Jair Bolsonaro e impôs a censura. Fiscais eleitorais teriam encontrado, na universidade, panfletos que associavam o candidato ao fascismo e, por isso, afirmaram que a dita faixa representaria um ato político-eleitoral. Para eles, a manifestação se voltava "contra o 'fascista' e não contra o 'fascismo"' – sim, é isso mesmo o que você acabou de ler. "A distopia simulada nas propagandas negativas contra o candidato Jair Bolsonaro encontradas dentro da Faculdade de Direito da UFF permite o reconhecimento do caráter político-eleitoral dos dizeres constantes na faixa em questão", escreveu a magistrada em sua decisão.
Na Universidade do Estado do Rio de Janeiro houve ação de policiais militares para tentar retirar faixa em homenagem à vereadora Marielle Franco, executada em março, e outra que diz "Direito Uerj Antifascismo". Nenhuma delas contava com referências a partidos políticos.
Operações como essas foram realizadas em universidades de públicas de todo o país sob a justificativa de combater suposta propaganda eleitoral irregular. Denúncias de comportamento arbitrário, abusivo e violento circularam pela rede, com reclamações de que debates e aulas foram invadidos por policiais e fiscais. Reportagem de O Globo afirmou que são 17 universidade com relatos semelhantes. Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas, da Universidade de São Paulo, está centralizando relatos e denúncias e, até a noite desta quinta (25), já estavam na lista a UFGD, UEPA, UFCG, UFF, UEPB, UFMG, Unilab, SEPE-RJ, Unilab-Fortaleza, UNEB, UFU, UFG, UFRGS, UCP, UFSJ, UERJ, UFERSA, UFAM, UFFS, UFRJ, IFB, Unila, UniRio, Unifap, UEMG, UFAL, IFCE, UFPB, UFRPE, Unesp.
A universidade (ainda mais a pública) é espaço para livre circulação e debate de ideias, não uma repartição pública convencional com regras restritas. O estranho seria se uma determinada posição política (à esquerda ou à direita) não pudesse se manifestar livremente nelas. Mas vivemos tempos invertidos nos quais o que assusta é exatamente o exercício da liberdade. Liberdade que deveria ser sinal de que a democracia segue saudável – apesar das ameaças cotidianas à sua existência.
Conversei com colegas professores de algumas das instituições envolvidas. Estão assustados com as ações, que chegaram ao ponto de terem policiais verificando o que seria ministrado em aula, indo de encontro à autonomia universitária, à liberdade de cátedra e à racionalidade humana. Um clima de macarthismo à brasileira vai se estabelecendo, ferindo direitos civis e políticos com a ajuda de quem enxerga doutrinação em todo o lugar. E chama de "ideológico" qualquer ideologia que não a sua – que é vista apenas como "bom senso".
A situação, claro, não começou agora. Nos últimos dois anos, houve alguns registros de violência contra eventos conservadores (como a exibição de um filme na Universidade Federal de Pernambuco) e muitos contra os progressistas (como as seguidas ameaças de morte a professoras e alunas do curso de Estudos de Gênero e Diversidade, da Universidade Federal da Bahia). Os relatos, contudo, cresceram significativamente na reta final desta que é a eleição mais violenta de nossa história recente.
Abusos eleitorais reais, como a transformação de estrutura pública em comitês e a utilização de aulas para comícios visando à promoção de um partido, devem ser investigados e os responsáveis punidos. Mas isso não dá o direito de promover repressão ideológica baseada na profusão de denúncias anônimas e vazias e da interpretação enviesada da lei eleitoral e da Constituição Federal por parte de funcionários públicos. Ademais, ordenar a retirada de uma bandeira antifascista afirmando que isso poderia representar uma crítica a um candidato pode ser visto como uma crítica ao referido candidato, dependendo do ponto de vista.
A Justiça Eleitoral e a polícia, ao invés de saírem interpelando estudantes e professores por discutirem política, deveriam se dedicar com mais afinco às consultorias digitais e agências de marketing que disparam milhões de mensagens via contas falsas de WhatsApp e controlam páginas nas redes sociais que são usadas para manipular o debate eleitoral, criando novas formas de caixa 2. Só que parte do Estado brasileiro prefere cometer os mesmos erros do passado do que enfrentar os desafios que se colocam à nossa frente.
Post atualizado às 11h14, do dia 26/10/2018, para inclusão de informações.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.