Bolsonaro diz que é horrível ser patrão no Brasil. E ser trabalhador?
Leonardo Sakamoto
04/12/2018 20h06
"É horrível ser patrão no Brasil", afirmou Jair Bolsonaro em reunião com a bancada do MDB nesta terça (4), de acordo com registro do jornal O Globo. Ele reclamava da legislação, defendendo o aprofundamento da Reforma Trabalhista, que mudou mais de 120 itens da CLT no ano passado. Depois, em coletiva à imprensa, afirmou que "continua sendo muito difícil ser patrão no Brasil".
Sim, ele poderia ter dito "é horrível ser trabalhador no Brasil" ou "continua sendo muito difícil ser trabalhador no Brasil" por conta dos baixos salários (em média, os brasileiros ganham 2,3 salários mínimos), do alto índice de informalidade (segundo os últimos dados do IBGE, são 11,6 milhões o número de empregados do setor privado sem carteira assinada – sem contar os que trabalham por conta própria), dos 12,4 milhões de desocupados, dos 27,2 milhões de subutilizados ou dos 4,7 milhões de desalentados – que nem procuram mais emprego porque sabem que não vão conseguir. Mas preferiu falar dos patrões quando tratou da legislação que rege a compra e venda da força de trabalho.
(Como ele já informou que considera uma "farsa" a metodologia para cálculo do desemprego no Brasil do IBGE e disse que iria alterá-la, creio que ignore esse números.)
Se ele ainda tivesse dito que é horrível ser pequeno empresário urbano no Brasil ou pequeno produtor rural, eu poderia concordar. Essas categorias estão tão estrepadas quanto os trabalhadores mais pobres e a maior parte da classe média baixa. Mas ele não fez qualquer diferenciação. Vale lembrar que sua audiência era formada de congressistas – grupo social que conta com grandes empresários – que, aliás, votaram por perdoar parte de suas próprias dívidas com a União ao aprovar um novo refinanciamento com condições de mãe.
Isso me lembrou de outra declaração do presidente eleito, ainda candidato, no dia 17 de outubro, em entrevista ao SBT: "Eu acho que, no Brasil, você não pode falar em mais ricos, está todo mundo sufocado. Se você aumentar a carga tributária para os mais ricos, como a França fez no governo anterior, o capital foi para a Rússia. O capital vai fugir daqui, a carga tributária é enorme. Quase tudo é progressivo no Brasil".
Sufocados? Quem sufocou na crise foram – novamente – os mais pobres, a classe média, os pequenos empresários. Os mais ricos e os grandes patrões conseguiram Michel Temer para defendê-los sem constrangimento e, ao que tudo indica, não vão ficar desamparados a partir de 2019.
Já no dia 9 de novembro, ele afirmou que "o Brasil é o país dos direitos, só não tem emprego", em uma live no Facebook. Durante a campanha, repetiu exaustivamente que direitos e empregos são mutuamente excludentes. Disse que não iria tirar os direitos trabalhistas previstos no artigo 7o da Constituição Federal, até porque não conseguiria nem se tentasse. Mas há outras formas de limitar a qualidade de vida dos trabalhadores para além de mudanças constitucionais.
Em seu programa de governo, Bolsonaro propôs a criação de uma categoria que estaria sujeita a menos proteção que as demais. "Criaremos uma nova carteira de trabalho verde e amarela, voluntária, para novos trabalhadores. Assim, todo jovem que ingresse no mercado de trabalho poderá escolher entre um vínculo empregatício baseado na carteira de trabalho tradicional (azul) – mantendo o ordenamento jurídico atual –, ou uma carteira de trabalho verde e amarela (onde o contrato individual prevalece sobre a CLT, mantendo todos os direitos constitucionais)."
Ou seja, pretende liberar o empregador do cumprimento de toda e qualquer proteção prevista em outras leis, desde que não esteja na Constituição, bastando para isso a concordância do candidato a uma vaga.
Poucos discordam que a livre elaboração de um contrato, com direitos e deveres de ambas as partes, postos na mesa de forma igual e equilibrada, é a situação ideal. O problema é que um contrato individual pode ser firmado tanto em benefício do trabalhador quanto em seu prejuízo – neste último caso, envolvendo principalmente indivíduos economicamente vulneráveis. E aí reside o problema.
Isso vai ao encontro do que ele afirmou em sabatina a empresários em julho, que, por sua vez, está alinhado com a live e com as declarações desta terça: "O trabalhador vai ter que decidir se quer menos direitos e emprego, ou todos os direitos e desemprego". Como se essa relação fosse necessariamente binária.
A Reforma Trabalhista permitiu que, desde novembro do ano passado, a negociação entre patrões e empregados ficasse acima do que diz a CLT. Ela, porém, limita os temas em que isso pode acontecer e afirma que a decisão deve ser tomada de forma coletiva, através de sindicatos. Pois, no desespero, diante da dificuldade de conseguir um trabalho, um indivíduo pode ser pressionado, objetivamente ou pelas circunstâncias, a ceder e abrir mão de proteções conquistadas com muita negociação ao longo de décadas.
Para esses trabalhadores "verde e amarelos" seriam garantidos os direitos previstos na Constituição Federal, como férias e 13o salário, mas ficariam de fora conquistas obtidas ao longo dos últimos 70 anos e registradas na CLT. Como aquelas que dizem respeito à proteção à saúde e à segurança, questões sobre o descanso e a jornada de trabalho, regras para demissão de empregados, por exemplo.
Para muitas pessoas, uma proposta como essa significa o fim da tutela do Estado sobre os trabalhadores, dando a eles mais liberdade. Contudo, da forma como está posta, representa mais o enfraquecimento da fiscalização sobre alguns empregadores, permitindo que avancem sobre um terreno hoje proibido em nome da competitividade.
E nem será possível propor discussões tripartites (governo, trabalhadores, empresas) no âmbito do Ministério do Trabalho porque este – segundo seus planos – vai ser esquartejado.
Em um país em que trabalho não é visto como parceria entre empregadores e empregados, mas como favor do patronato, realmente deve ser horrível essa gente pobre, reclamando do salário e das condições do serviço. Bando de mal-agradecidos.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.