Bolsonaro terá autoridade contra corrupção se caso não for esclarecido?
Leonardo Sakamoto
16/12/2018 12h05
O motorista e ex-assessor do senador eleito e deputado estadual Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, é amigo do presidente eleito
Corrupção é uma questão de descumprimento de leis, negação de princípios e quebra de confiança e não depende do tamanho da quantia ou dos nomes envolvidos. Esse, aliás, foi o discurso largamente utilizado para várias das acusações contra Lula. Não importava que o caso envolvia "benefícios" como a compra de pedalinhos ou a reforma de um sítio meia-boca, tampouco que acusava alguém poderoso como ele, respostas foram exigidas.
Se isso vale para o ex-presidente que cumpre pena em Curitiba, vale também para o presidente eleito e sua família. A justificativa de que os R$ 24 mil depositados na conta da futura primeira-dama faziam parte da devolução de um empréstimo de R$ 40 mil concedido a Fabrício José de Queiroz, ex-assessor e ex-motorista de seu filho Flávio e amigo de longa data de Jair Bolsonaro, é insuficiente e demanda mais esclarecimentos. A dúvida, corroborada por toda situação bizarra, é o bastante para exigir do próximo mandatário essas informações.
O juiz federal Sérgio Moro concordaria com isso, mas infelizmente o futuro ministro da Justiça Sérgio Moro parece ter se dado por satisfeito com as respostas do chefe. Da mesma forma, o general da reserva Augusto Heleno, futuro ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, isentou Bolsonaro, pois "o que apareceu dele é irrisório".
Não são poucos os parlamentares, dos mais diferentes matizes ideológicos, que obrigaram assessores a lhes devolverem parte dos salários como forma de aumentar ilegalmente sua remuneração. Normalmente, essa é a alternativa "ladrão de galinha" para quem não faz parte do centro de poder e não indicou pessoas em postos-chave-de-cofre. E, portanto, não consegue participar de grandes negociatas, para conseguir tirar o seu faz-me-rir.
Apenas uma investigação isenta poderá mostrar se há alguma sacanagem nas movimentações, se a família Bolsonaro tem responsabilidade nela e, consequentemente, qual seu grau de envolvimento. Os registros de que outros funcionários lotados no gabinete de Flávio, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, repassaram integralmente ou sistematicamente seus vencimentos a Fabrício que, por sua vez, sacou ou transferiu o montante, é o suficiente para que uma análise cuidadosa seja feita. E de forma rápida. O que seria bom para a imagem pública do próprio presidente eleito, caso não haja nenhuma irregularidade.
Esse caso é excelente para analisar o quanto o nosso sistema de Justiça segue seletivo e continua deixando que afinidades influenciem no processo.
Certa vez, o senador Romero Jucá (MDB-RR) sabiamente explicou: "suruba é suruba. Aí é todo mundo na suruba, não uma suruba selecionada". A declaração havia sido uma crítica à restrição do foro privilegiado de políticos apenas a fatos acontecidos no mandato em exercício, não abrangendo o que veio antes. Ele havia defendido que a restrição valesse para todo mundo, incluindo o Judiciário e Ministério Público, ou para ninguém. Depois da repercussão negativa, voltou atrás, dizendo que a declaração estava fora de contexto e, na verdade, citara uma música do finado grupo Mamonas Assassinas. Talvez o trecho a que ele se referia, na música Vira-Vira, era "Neste raio de suruba, já me passaram a mão na bunda. E ainda não comi ninguém!".
Essa história de quem comeu quem remete à já clássica e icônica gravação da conversa que Jucá teve com Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, que foi divulgada pela Folha de S.Paulo, em maio de 2016: "botar o Michel, num grande acordo nacional", "com o Supremo, com tudo". Ele afirmou que havia "caído a ficha" de líderes do PSDB sobre o potencial de danos da Lava Jato: "Todo mundo na bandeja para ser comido". Sérgio Machado afirmou então que "o primeiro a ser comido vai ser o Aécio". A lama cobriu o senador mineiro até o pescoço quando notícias sobre esquemas do qual fazia parte foram aflorando uma a uma. Mas, até agora, Aécio tem sido longamente mastigado, não comido. Sua carne é premium, maturada, branca, rica, de família. É Friboi, como a de Temer. E o sistema, como sabemos, apesar de ter deixado passar alguns figurões na política e na economia, ainda tem digestão seletiva, com preferência a carne negra, pobre e periférica.
Também será uma boa prova para milhões de brasileiros que bateram no peito a necessidade de mudança, demonstrando ojeriza à qualquer indício de corrupção – demanda digna e que é ou deveria ser compartilhada pela maioria do país. Muitos deles votaram em Bolsonaro, que se elegeu com o discurso da moralidade e da transparência na política. Será que essa exigência vale para todos os políticos ou só àqueles com os quais esse grupo não concorda ideologicamente? Quem acusou, correta ou injustamente, militantes petistas de terem "corruptos de estimação" pode, agora, adotar um pet sob risco de estampar hipocrisia ou oportunismo na testa? É justo o autoengano de que peculato é crime contra administração pública apenas acima de determinado valor?
Da mesma forma, talvez acreditem que a caixinha que oferecem ao policial na rodovia após ultrapassar a velocidade limite ou o agrado dado a um funcionário público para que o seu processo corra mais rápido que o dos outros não é corrupção. Provavelmente, perfazem o mesmo grupo que considera que sonegação nada mais é que uma forma de resistir contra a opressão do Estado.
Se o presidente eleito e seus auxiliares se dão por satisfeitos com as respostas dadas e se Flávio Bolsonaro afirma que o ex-assessor relatou a ele uma "história bastante plausível", garantindo que as transações não são ilegais, tá ok – para eles. Parte da população não aceita isso e acredita que o Estado deve dar respostas. Caso a origem do dinheiro movimentado pelo ex-assessor e amigo dos Bolsonaros não for devidamente esclarecida, o governo vai confirmar que uma coisa é o discurso de campanha, outra, a realidade.
Transparência é um dos principais princípios de uma República. Até agora, ao que tudo indica, é algo que Bolsonaro acha que deve ser perseguido, mas apenas pelos outros.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.