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O Brasil vai desligar a máquina de fazer tragédias ou só limpar a bagunça?

Leonardo Sakamoto

02/02/2019 13h06

Bombeiro procura vítimas após rompimento de barragem em Brumadinho (MG). Foto: Mauro Pimentel/AFP

A responsabilidade da Vale por centenas de vítimas em Brumadinho é clara. Se a Justiça for feita, muita gente vai em cana e a empresa terá que, além de desembolsar indenizações morais, materiais e ambientais bilionárias às pessoas à coletividade e ao país, bancar até o banho e tosa dos cachorros que foram cobertos de lama no caminho dos rejeitos de minério de ferro.

Se a Justiça for mesmo feita, isso vai envolver também administradores e gestores públicos que eram responsáveis por fiscalizar e limitar os efeitos do porte de arma, quer dizer, da autorização para que a empresa depositasse milhões de metros cúbicos de resíduos da exploração sem segurança para tanto. E, claro, magistrados e legisladores que deveriam ter cumprido seu papel de garantir não apenas o crescimento econômico, mas também a proteção dos direitos sociais como previsto no artigo 3o da Constituição Federal que trata dos objetivos da República.

É importante punir CPFs, CNPJs e membros do poder público, mas não apenas. Somos capazes de mudar nosso modelo de desenvolvimento e, mais do que isso, quais alternativas temos a ele? Municípios como Brumadinho dependem profundamente da operação da Vale e de outras empresas do mesmo setor não apenas por empregos, mas pelo dinheiro dos impostos e royalties. Famílias de mortos na tragédia, ouvidas por colegas jornalistas nos últimos dias, afirmaram que querem Justiça, mas também disseram que não imaginam como seria sua vida sem a mineração – que já foi retomada em outras empresas da região.

O Estado, ao deixar o planejamento do desenvolvimento de toda uma região nas mãos da iniciativa privada, ausentando-se em fomentar efetivamente a diversificação econômica, acaba contribuindo para uma perigosa dependência. Esse erro só é percebido após uma tragédia, como a de 25 de janeiro, mas também quando, após um boom crescimento relacionado à exploração extrativista, chega o momento do colapso regional com a exaustão de uma mina.

Mariana depende da Samarco da mesma forma que Brumadinho depende da Vale. Qual o plano B que o poder público, em suas várias esferas, projetou para esses locais para o dia em que o plano A falhar? A falta de uma resposta consistente é a mesma que traz ansiedade a outros locais de onde empresas brasileiras ou multinacionais extraem riquezas, gerando empregos e arrecadação, levando crescimento, mas também colocando em risco vidas e o meio ambiente, em uma contagem regressiva para o abandono.

A ideia de que vale crescimento acima de qualquer coisa (o trocadilho foi intencional), que norteia um conceito ultrapassado de desenvolvimento, professado por expoentes dos principais grupos políticos do Brasil, está na gênese das catástrofes. O fato de ninguém ter apresentado um projeto claro de desenvolvimento do país nas eleições e da população não ter sentido falta disso são sintomas desse quadro. Vamos à deriva, agindo de forma reativa.

O discurso de que o desenvolvimento é a peça-chave para a conquista da soberania (o que concordo) e que, portanto deve ser obtido a todo o custo (o que discordo) tem sido usado por gente de todo o espectro político. Mantém viva a ideia de que o sacrifício de peões é um dano colateral para ganhar o jogo.

No Brasil, movimentos e organizações sociais, pesquisadores e jornalistas que cobrem sistematicamente o tema defendem que o crescimento não pode ser uma onda de lama passando por cima de pessoas e do meio ambiente. Por conta disso, são taxados de entreguistas e de fazerem o jogo do capital internacional, ajudando o "interesse externo".

Passamos anos falando dos riscos da exploração mineral inconsequente em um país no qual grandes empresas controlam não apenas a produção de leis como influenciam nos processos de licenciamento e fiscalização e no julgamento de disputas que as envolve mas a culpa é do mensageiro.

Logo após tragédias, o coro é contra os responsáveis por elas. No restante do tempo, o coro é contra quem denuncia e alerta sobre riscos.

Como já disse aqui, o Congresso Nacional deveria ser rigoroso na criação de leis que responsabilizem empresas e seus dirigentes, em ações de prevenção a danos causados pela mineração, na garantia de estrutura e liberdade para fiscalização. E prever que, algumas vezes, a proibição de exploração – até que se encontre uma maneira verdadeiramente racional de extrair o minério – é o único caminho.

O atual modelo, em plena vigência no Brasil, tem um potencial destruidor muito grande, além de ser extremamente concentrador. Ou seja, o resultado da pilhagem dos recursos naturais e do trabalho humano, mantendo o padrão adotado até aqui, continuará nas mãos de poucos, sejam eles brasileiros ou estrangeiros.

Passou da hora de tirarmos o "desenvolvimento sustentável" da prateleira da ficção. Para isso, será necessário que o modelo de crescimento da ditadura – que continua sendo implementado, com algumas mudanças, pelas mesmas pessoas que foram torturadas por ela ou celebraram as torturas – seja julgado e, finalmente, substituído.

E a perspectiva de futuro de milhões de pessoas não se encerre quando a montanha no horizonte for levada, por trem ou barco, para longe dali.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto