Crise na Venezuela requer inteligência, não diplomacia de Twitter
Leonardo Sakamoto
23/02/2019 19h48
Na fronteira, em Pacaraima (RR), primeiro de dois caminhões de alimentos e remédios destinados à Venezuela. Foto: Maurício Monteiro
Nas fronteiras do Brasil, um país vizinho está se esfacelando, com a população dividida, um regime falido, que há muito já deixou de ser democrático, refugiados saindo às centenas todos os dias, um auto-proclamado presidente na oposição e potências estrangeiras contribuindo para o conflito.
Como chegou a dizer mais de uma vez o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ameaçando o uso da força armada, todas as opções estão sobre a mesa quanto à Venezuela. Neste momento, é difícil prever o resultado da crise. Poderia ir desde uma queda negociada e relativamente pacífica do regime de Nicolás Maduro, seguida de uma transição democrática ordenada (talvez o melhor cenário), até uma guerra civil sangrenta, com envolvimento, em campos contrários, de países como Estados Unidos, Rússia, e China, que poderia transformar o nosso entorno em uma espécie de Síria, com consequências humanas desastrosas (o pior).
Para o Brasil, esta não é uma situação nada fácil, que requer ponderação, pragmatismo, serenidade e inteligência. Como líderes do Brasil, nossos governantes precisam estar à altura da crise e atuar, na medida de suas possibilidades, para reduzir as probabilidades dos piores cenários e elevar a probabilidade dos melhores.
O que temos, no entanto, é um governo dividido, com um ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, profundamente ideológico e perigosamente incauto, não se importando em insuflar o conflito, e uma ala, com o vice-presidente general Hamilton Mourão, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Santos Cruz, buscando evitar que a crise tome proporções de um conflito internacional.
A divisão das alas se materializou em reunião recente no Palácio do Planalto sobre enviar ou não ajuda humanitária à Venezuela, mesmo contra a posição do governo Maduro, que fechou a fronteira e afirma que a ajuda é apenas um pretexto para intervenção militar. Nessas condições, enviá-la em caminhões foi arriscar provocação, tiros, eventualmente a morte de motoristas, soldados ou voluntários… o que seria a senha para um acirramento.
Enquanto alguns preferiram evitar esse tipo de envolvimento, o chanceler teria sido a favor, posição que, pelo momento, acabou respaldada pelo presidente Jair Bolsonaro. Vale lembrar que, antes, ideias mais incautas vindas da área de relações exteriores, como acolher bases norte-americanas em solo brasileiro, foram recusadas pelos ministros militares e, depois, pelo presidente.
Ernesto Araújo, que parece se pautar pela bolha dos aplausos desmiolados de parte de seus seguidores no Twitter, ao pregar uma interferência direta nos assuntos internos de outro país de uma forma intempestiva, guiando-se por agendas de outras nações, colocou na reta mais de um século de tradição diplomática brasileira e pode ter desrespeitado nada menos que quatro incisos da Constituição Federal. Esta, em seu artigo 4º, determina que as relações internacionais do Brasil deverão reger-se pelos princípios da autodeterminação dos povos; da não-intervenção; da defesa da paz; e da solução pacífica dos conflitos, entre outros.
Ajuda humanitária é fundamental para aliviar o sofrimento de populações em situação de emergência, por conta de guerras, desabastecimento grave, conflito ou desastres naturais ou econômicos. Quem quer fazer de fato ajuda humanitária, porém, deve fazê-lo de forma neutra, e desvinculada de objetivos políticos, estratégicos ou militares.
Se o objetivo é ajudar populações carentes, o mais acertado seria buscar fazê-lo por intermédio de organizações neutras como o Programa Mundial de Alimentos e a Cruz Vermelha, e não por governos declaradamente inimigos de Maduro. A não ser que o objetivo seja, na verdade, a provocação.
Com as notas raivosas e intolerantes emitidas pelo chanceler contra o governo da Venezuela, e seu apoio imediato ao opositor Juan Guaidó, o Brasil já se descredenciou totalmente como um país que poderia enviar ajuda de forma desinteressada. Se tivéssemos uma política externa mais inteligente, o Brasil poderia hoje ser um mediador relevante, com credibilidade junto aos dois lados do conflito, afastando as chances de violência e mantendo à distância a influência desestabilizadora dos EUA, China e Rússia, e ao mesmo tempo garantindo a preservação de seus interesses.
Não há dúvida de que Nicolás Maduro preside um regime que já se tornou antidemocrático e violento, além de econômica e socialmente desastroso, como já foi dito mais de uma vez neste espaço. Daí a arriscar uma intervenção armada de potências estrangeiras, com apoio do Brasil, e um conflito que poderia criar uma nova Síria nas nossas fronteiras, vai uma distância muito grande.
Pode ser que acabe dando tudo certo. Se der, porém, terá sido apesar da nossa política externa abilolada, e não por causa dela.
Sobre o Autor
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.