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Homens, nosso silêncio diante da violência de gênero nos torna cúmplices

Leonardo Sakamoto

26/02/2019 09h17

No último ano, 27,4% das mulheres no Brasil sofreram algum tipo de violência ou agressão. Dessas, 23,8% foram agredidas por companheiros, maridos ou namorados, 21,1% por vizinhos, 15,2% por um ex, 7,2% pelos pais e 6,3% por amigos. Das agressões, 42% aconteceram em sua própria casa e 52% das mulheres decidiram não denunciar. Isso equivale a 16 milhões de vítimas por ano. Ou mais de 30 por minuto.

O levantamento, realizado pelo Datafolha, foi encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e faz do relatório "Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil", divulgado nesta terça (26).

Em uma sociedade historicamente estruturada em torno da violência de gênero, nossa responsabilidade como homens não é apenas evitar que nós mesmos sejamos vetores do sofrimento simbólico, psicológico ou físico das mulheres cis e trans. Neste caso, não basta cada um fazer sua parte para que o mundo se torne um lugar melhor. Se você fica em silêncio e não age junto aos outros homens diante de situações que fomentam a violência, sinto lhe informar que tem optado pela saída fácil da delinquência social.

Sim, ao ver um colega relinchando aberrações inconcebíveis na mesa do bar e não questioná-lo por isso, dando uma risadinha de conta de boca; ao ouvir aquele tio misógino defender que "mulher que se preze não usa saia curta" e ficar em silêncio; ao assistir àquele "humorista" fazer apologia ao estupro e não mudar de canal ou enviar mensagem protestando às autoridades; ou ao se deparar com um amigo compartilhando histórias de violência sexual e sua única reação foi um beicinho de desaprovação, você – em maior ou menor grau – está sendo cúmplice de tudo isso.

Nós, homens, temos a responsabilidade de educarmos uns aos outros, desconstruindo nossa formação machista, explicando o que está errado, impondo limites ao comportamento dos outros quando esses foram violentos, denunciando se necessário for. Não é censurar a liberdade de outras pessoas, pelo contrário. Esses são atos para ajudar a garantir que as mulheres possam desfrutar da mesmo liberdade que nós temos – liberdade que nossos atos e palavras sistematicamente negam a elas.

Nós, homens, pensaríamos duas vezes antes de fazermos comentários machistas e violentos se tivéssemos medo de sermos criticados, repreendidos e humilhados publicamente por outros homens em um almoço de família, no intervalo das aulas da faculdade, na mesa de bar. E, é claro, também nas conversas, publicações, curtidas e compartilhamentos no Facebook, Twitter e WhatsApp.

Precisamos qualificar o debate público. Não é tornar as conversas do dia a dia chatas, moralistas, hipercodificadas, barrocas ou acadêmicas e sim ajudar o outro a perceber a complexidade do mundo em que vive e a construir um novo sentido para as coisas. Um sentido que não trate mulheres como objetos descartáveis à nossa disposição.

Essa qualificação, é claro, vem de um processo que envolve escolas, famílias, sociedade civil e mídia. Em tese, é um processo lento, porque passa pela formação de visão de mundo. Mas mulheres continuam a ser agredidas, estupradas e mortas simplesmente por serem mulheres na segunda década do século 21. Portanto, não temos o luxo de contar com esse tempo. Temos que promover essa mudança em nosso comportamento imediatamente.

A maioria dos casos de violência são cometidos na própria residência das vítimas. Ou seja, no local que elas consideravam seguro. Ironicamente, parte do foco do debate público sobre violência é centrado na falsa ideia de que o perigo vem apenas daquilo que é desconhecido ou de fora. E que o porto seguro é a família e a religião, enquanto a violência vem da arte, da cultura, da educação.

As estatísticas e grandes casos de comoção nacional mostram o contrário, que também vêm daqueles em quem mais confiamos – líderes espirituais, médicos, padres, pais, tios, avôs, irmãos, primos, amigos. E, por vezes, denúncias são soterradas em montanhas de silêncio para manter as aparências. Isso quando são levadas a sério.

A verdadeira "ideologia de gênero" é martelada cotidianamente em nossas cabeças para que acreditemos que nós, homens, temos mais valor do que mulheres, naturalizando a violência contra a mulher e fazendo com que a nossa de homem tenha mais valor que as delas.

Essa ideologia contemporiza quando a mulher é transformada em objeto de prazer para ser violentado dentro da própria casa e alvo de ejaculação em trens e ônibus; chama o assédio sexual e o desrespeito de "simples elogio" ou "brincadeira"; declara o corpo delas é propriedade masculina, tentando proibir até abortos em caso de estupro; faz com que elas se sintam culpadas pela violência que sistematicamente sofrem; torna o disparate tão normal a ponto de nunca ser preciso pedir desculpas, mas, pelo contrário, faz com que esperemos delas a desculpa pela nossa própria agressão.

Ter coragem de vir a público e denunciar é uma ação poderosa. Temos que ouvir em silêncio o que as mulheres têm a dizer e refletir sobre isso. Nós homens precisamos entender que nosso discurso e nossas atitudes violentas não cabem mais no mundo em que estamos. Na verdade, nunca couberam, mas nós somos pródigos em calar aquilo que nos desagrada.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto