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No Carnaval, a rua avisa que o atraso terá que suar a camisa para se impor

Leonardo Sakamoto

05/03/2019 20h08

Bloco Acadêmicos da Cerca Frango, que desfilou em São Paulo, nesta terça (5). Foto: Leonardo Sakamoto

Quem não foi à rua exorcizar seus anjos e demônios neste Carnaval talvez não saiba que o PSL conseguiu lançar tendência nos blocos de rua, cravando o laranja como a cor de Momo. Credita-se a estilistas como Fabrício Queiroz e Gustavo Bebianno o sucesso do partido, que fez a alegria dos foliões.

Jair Bolsonaro também foi amplamente lembrado em blocos por todo o país, o que seus fãs e seguidores consideraram como uma afronta e um desrespeito. Pois, na opinião de muitos deles, apenas os presidentes petistas deveriam ser convocados a tomar no cu. Um amigo, liderança no movimento LGBTT, discorda veementemente das cantorias. Não só pela agressividade, mas porque a maioria dos políticos não mereceria, segundo ele, tal felicidade. Ou como cantaram em mais de um bloco: "vai tomar polícia, porque tomar no cu, eu te garanto, é uma delícia".

Reclamar que blocos e escolas de samba tenham assumido um caráter de crítica política e social é ignorar a história das festas populares. Carnaval é contestação e subversão. Não é a contestação do beijo forçado, da nudez como produto e do obscurantismo punheteiro, que apenas deseja reproduzir – durante o feriado – o cotidiano de nossa sociedade violenta. Mas a contestação do machismo, fazendo-o entender plenamente o significado da palavra "não" e deixando claro que mulheres têm o mesmo direito de nós, homens, de andar com o peito nu sob o sol.

Quando é pasteurizada, transformada em produto, empacotada e vendida, a contestação tende a ser domesticada e pode perder o que tem de melhor: lembrar a nós mesmos como somos ridículos, impondo ridículos padrões aos nossos semelhantes, sujeitando minorias a ridículas tradições, seguindo ridículos profetas que estão nas TVs e nas redes sociais.

O Carnaval, portanto, não é apenas a arte da libertação. É também a do incômodo.

Como lembrar, em muitas das festas, que o Estado brasileiro foi incompetente para apontar quem são os responsáveis pela execução de Marielle Franco e Anderson Gomes, que completa um ano em 14 de março.

Espero, sinceramente, que muitas pessoas nem venham a ler este texto porque estarão cansadas demais após o bloco, o desfile, o almoço com a família, o churrasco com os amigos, tendo queimado ou ganhado calorias nos dias que antecedem a Quarta-feira de Cinzas, ou seja, o Ano Novo.

Piadas, ironias, sarcasmos no Carnaval podem não mudar o comportamento do poder, seja político ou econômico. Principalmente quando ele está determinado a cercear a dignidade alheia. Mas servem para que possamos perceber que não somos os únicos a questionar as suas atitudes  – condição necessária para o sucesso de qualquer resistência à perda de direitos por sermos quem somos ou amarmos quem amamos.

E, junto com os elementos libertário e solidário da festa, lembrar que apesar de toda gritaria ultraconservadora, o retrocesso vai ter que suar a camisa para se impor. Bem mais do que um folião seguindo um trio elétrico ou uma fanfarra, cantando sua liberdade, em algum canto do país.

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Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.


Leonardo Sakamoto